O post sobre a pornochanchada, somado às reflexões que, instado por um aluno da Unesp, me dispus a fazer para responder a um questionário sobre o cinema brasileiro dos anos 80, acabou por trazer novamente à baila uma questão ainda irrespondida pelos estudos de cinema: o que exatamente aconteceu com nossa cinematografia durante a chamada “década perdida”?
Uma das perguntas do questionário era exatamente se tal denominação, comumente dirigida à história político-econômica do país, também se aplicava ao cinema. Não creio ser exatamente o caso. Primeiro, porque “perdida” é um termo forte demais; segundo, porque embora fragmentário e crepuscular, o cinema nacional dos anos 80, em suas principais vertentes, não deixou de influenciar seus sucessores – incluindo o cinema do presente. E algo que germinou, deu frutos, não pode ser considerado em vão.
Agora, quanto a ter sido uma das décadas mais fracas da história do cinema nacional, penso não haver dúvidas. Uma série de eventos contribui para tal diagnóstico. A diminuição no volume e na qualidade da produção cinematográfica brasileira dos anos 80 está estruturalmente ligada à crise do modelo econômico adotado pelo regime militar, que, baseado em vultoso endividamento externo, ruiu com os reflexos da crise internacional do petróleo. Porém não se deve tomar essa explicação como a única: o esgotamento do modelo da Embrafilme (que passava por sucessivas crises internas e era justamente acusada de privilegiar determinados grupos no Rio e em São Paulo), o baixo índice de renovação de diretores/roteiristas inerente a tais vicissitudes, a popularização do videocassete, o aumento exponencial dos índices de violência urbana e a recuperação do cinema norte-americano (que passara pela maior crise de público de sua história entre meados dos anos 60 e final dos 70 e então renascia com os blockbusters) também são fatores importantes da crise.
Sob a sombra de Pixote
Além dessas ponderáveis todas, eu diria que, após atingir uma espécie de ápice estético-ideológico – incluindo amplo reconhecimento internacional - com Pixote, a lei do mais fraco(Hector Babenco, 1980), houve um natural refluxo na qualidade de boa parte da produção do cinema brasileiro nos anos imediatamente posteriores, acometido de uma espécie de síndrome obsessiva por repetir o feito de Babenco. Fenômeno semelhante ocorreria, décadas depois, imediatamente após o sucesso no exterior deCentral do Brasil (Walter Salles, 1997) e de Cidade de Deus(Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002).
Tudo somado, e por conta do agravamento da crise econômica a partir de 1982, não foi possível retomar a produção nas bases anteriores, mesmo porque o aparato estatal de produção, fiscalização e distribuição (Embrafilme, INC e Concine) fora erodido e empobrecido, até ser extinto por Collor em março de 1990.
Em uma sociedade descuidada de sua memória cultural e dotada de uma cinematografia feita de “mortes súbitas e renascimentos precários”, como alude Roberto Moura, a brutal canetada de Collor contribuiu para a desvalorização e o rápido esquecimento do cinema dos anos 80 (mesmo porque foi um dos fatores a impedir que boa parte da produção fosse lançada em vídeo). Mas é preciso restabelecer a memória sobre o cinema do período – o que demanda um corpo de pesquisas a respeito, algumas em andamento nas pós-graduações da área -, o qual este post debate de forma breve e sucinta.
Três vertentes de destaque
Para efeito de sistematização, poderíamos dizer que havia, grosso modo, três vertentes centrais atuando no cinema da época. A geração formada na ECA-USP produziu filmes que, embora diversos entre si, tendiam a um certo rigor formal – com o que isso potencialmente traz de positivo (se a serviço da criação de um universo estético-narrativo bem elaborado) ou de negativo (se entendermos o rigor como uma espécie de camisa-de-força formal).
Recentemente, o crítico e professor de cinema André Setaro resgatou um livro – O Cinema dos Anos 80, organizado por Amir Labaki – que, em sintonia com críticos do pós-modernismo como Fredric Jameson e Terry Eagleton, aposta justamente na paródia e no pastiche como conceitos-chave para analisar o, digamos, cinema internacional de qualidade produzido na época, incluindo o norte-americano. Tais elementos também aparecem nessa vertente uspiana do cinema brasileiro do período, que cultiva o gosto pela retomada, em clave pastiche, da divisão dos gêneros cinematográficos, dialogando com o cinema clássico hollywoodiano. A tal característica alia-se, com frequência, o gosto por uma estética urbana então contemporânea – para cuja atratividade colaborava o peculiar universo imagético dos anos 80, com sua cafonice multicolorida e/ou sua decadência pós-punk.
O formalismo uspiano atinge sua melhor expressão em produções como os curtas iniciais de Joel Pizzini (com destaque para Caramujo-Flor, de 1988), nas experiências iniciais do desde sempre engajado Sergio Bianchi ou mesmo, de forma mais matizada, de Tata Amaral, sozinha ou em dupla com Francisco César Filho. Já o o pastiche do filme de gêneros urbano destaca-se na obra inicial de Guilherme de Almeida Prado (da fase ainda em diálogo com a pornochanchada ou, posteriormente, em A Dama do Cine Shangai) e em filmes comoAnjos da Noite (Wilson Barros, 1986). Ainda nessa linha, o film noir é referência central para o longa-síntese da vertente uspiana, Cidade Oculta, dirigido por Chico Botelho em 1986 e que hoje se tornou, a meu ver merecidamente, um cult (curiosamente, não é sequer mencionado entre os quase 70 títulos elencados por Arthur Autran no verbete “Anos 80” da Enciclopédia do Cinema Brasileiro).
Uma outra vertente ativa e promissora advinha do “cinema jovem” carioca, o qual tinha no então “veterano” Antônio Calmon uma espécie de guru e que, rejeitando os tiques cinemanovistas e clamando por um cinema popular, prometia retomar, em figurino contemporâneo e com melhor resolução técnica, a tradição do musical e da comédia leve que caracterizou o período áureo da chanchada.
Tal grupo de cineastas – alguns dos quais depois migrariam para a TV, emplacando séries de sucesso, como Armação Ilimitada – produziria veículos descompromissados para o “novo rock brasileiro”, seja exaltando a vida ao ar livre e o universo do surfe no s filmes dirigido s por Calmon (Menino do Rio, Garota Dourada), seja no ambiente urbano carioca dos musicais de Lael Rodrigues (Bete Balanço, Rock Estrela,Rádio Pirata).
Mais para o final da década, além de arremedos de genialidade no novo cinema baiano, os curtametragistas gaúchos liderados por Jorge Furtado – o qual dirigiria a obra-prima Ilha das Flores - produziriam alguns ótimos títulos no formato, surgindo como uma lufada de ar fresco na produção nacional. A ruptura consubstanciada pelo ato tresloucado de Collor adiou a estréia dessa geração no âmbito do longa-metragem, mas eles acabariam por compor um foco permanente de resistência do cinema brasileiro no início da década seguinte, mantendo, ao lado dos curtas universitários da USP e da UFF, a produção ativa enquanto o setor, paralisado, mergulhava em crise profunda.
Uma geração boicotada
Os demais bons filmes do período não se limitam a essa produção promissora mas irregular: a adaptação de Memórias do Cárcere por Nelson Pereira dos Santos é uma obra-prima, como reconheceu o Festival de Havana, além de constituir um marco na adaptação da literatura ao cinema - ponto forte também de Inocência (1982), de Walter Lima Jr. Os dois filmes que o hoje deplorável colunista Arnaldo Jabor dirigiu sobre as relações amorosas – Eu Te Amo (1981) e Eu Sei que Vou Te Amar (1986)– são produções admiráveis, de nível internacional, enquanto as quatro produções do mineiro Carlos Alberto Prates Correa na década estão entre os momentos superlativos de expressão da cultura popular nacional nas telas. Ao passo que a turma do cinema marginal - Bressane, Sganzerla, Neville – seguia produzindo coisas interessantes e Ivan Cardoso investia no terrir brazuca com O Segredo da Múmia (1982), Carlos Reichenbach realiza, na segunda metade da década, dois de seus melhores filmes: o surpreendente Filme Demência e o delicado mas visceral Anjos do Arrabalde.
O problema é que todos esses filmes foram dirigidos por realizadores que já estavam na ativa há 20, 30 anos. Há poucas produções de qualidade feitas por diretores que se iniciaram na própria década de 80. A grande exceção, na minha opinião, é “Vera” (Sergio Toledo, 1987), um filme à frente da sua época, que discute a homossexualidade feminina de uma forma contundente e despojada de preconceitos, com uma atuação admirável - premiada com o Urso de Prata em Berlim - de Ana Beatriz Nogueira (na foto, com Aida Lerner) – que rivaliza com as impressionantes performances que Fernanda Torres seguidamente obteve nos filmes do período e que lhe valeram o prêmio de melhor atriz em Cannes porEu Sei que Vou te Amar e em Nantes por Com Licença, Eu Vou à Luta (Lui Farias, 1985).
Não seria correto esquecer, ainda, das obras que começaram a tratar das feridas da ditadura, como Pra Frente, Brasil (1982), de Roberto Farias (que, como presidente da insituição, protagonizaria uma das grandes crises da Embrafilme), o dilacerante e pouco reverenciadoNunca Fomos Tão Felizes (Murilo Salles, 1984) e, no mesmo ano, o seminal documentário Cabra Marcado para Morrer (Eduardo Coutinho).
At last but not at least, tanto o mergulho sagaz no universo caipira de Marvada Carne (1985), de André Klotzel, quanto o enxuto policial urbano Faca de Dois Gumes (Murilo Salles, 1989) também são amostras de uma cinematografia promissora, mas que, além de contemporânea de um período de intensas mudanças, em que o Brasil se reiventava após o claustro ditatorial, teve suas bases produtivas paulatinamente minadas, num processo que acabou por comprometer o balanço histórico de suas misérias e grandezas.
- MAURÍCIO CALEIRO
- Jornalista e cineasta (na foto, ao lado de Joca Caleiro, o cão mais simpático das redondezas)
retirado do cinema e outras artes no dia 13/04/2010:
http://cinemaeoutrasartes.blogspot.com/2010/04/o-cinema-brasileiro-dos-anos-80.html
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