terça-feira, 5 de abril de 2011

“A INDESEJADA DAS GENTES” POEMAS SOBRE A MORTE – SEGUNDA EDIÇÃO

Publicado originalmente por Cesar Cardoso no PATAVINA’S e retirado em 05/04/2011 do endereço:

http://cesarcar.blogspot.com/

“ALÔ, INILUDÍVEL”

“Quando a indesejada das gentes chegar”, disse Manuel Bandeira cantando a morte. Cantamos como quem sempre canta: para espantar os males, no caso o Mal Maior? Cantamos para conhecê-la? Por que cantamos desde sempre a Morte? Essa a pergunta que é preciso fazer mas desnecessário responder. As tantas respostas podem surgir na leitura desses textos que vêm desde a Roma clássica. E continuarão, enquanto houver traço humano sobre a Terra.

O PATAVINA’S lançou em meados de fevereiro sua primeira edição de poemas sobre a morte. Mas o material foi tamanho que se fez possível essa segunda edição (e não falo aqui de uma pesquisa exaustiva mas apenas de um trabalho com a rapidez da internet). Nesta nova edição há um livro que se destaca: Poesia Alheia. São 124 poemas traduzidos pelo escritor e poeta Nelson Archer e lançado pela Editora Imago em 1998. Um grande trabalho literário e uma delícia de leitura, que mostra como os poetas – humanos que são – pensam e repensam a morte.

Cesar Cardoso

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BLUES FÚNEBRES

Que parem os relógios, cale o telefone,

jogue-se ao cão um osso e ele não ladre mais,

que emudeça o piano e o tambor sancione

a vinda do caixão com seu cortejo atrás.

Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,

Escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.

Que as pombas guardem luto – um laço no pescoço –

e os guardas usem finas luvas cor-de-breu.

Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto

Viveu, meus dias úteis, meu fim-de-semana,

meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;

quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.

É hora de apagar estrelas – são molestas –

Guardar a lua, desmontar o sol brilhante,

De despejar o mar, jogar fora as florestas,

Pois nada mais há de dar certo doravante.

W. H. Auden (1907-1973) em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.

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GARRAS

Fica tua imagem e tua lembrança,

a ruminar nas telhas,

feito gato em crise.

Fica o teu cheiro e o teu silêncio,

a me apontar no escuro,

com o dedo em riste.

Fica tudo o que ficou,

por esquecimento.

O que não levastes,

por estranhamento.

Fica a tua ausência e o teu desgosto,

tuas garras em meu braço,

nervo exposto.

Luís Pimentel, em O Calcanhar da Memória, Bertrand Brasil.

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XI

Levarás contigo

Meus olhos tão velhos?

Ah, deixa-os comigo

De que te servirão?

Levarás contigo

Minha boca e ouvidos?

Ah, deixa-os comigo

Degustei, ouvi

Tudo o que conheces

Coisas tão antigas.

Levarás contigo

Meu exato nariz?

Ah, deixa-o comigo

Aspirou, torceu-se

Insignificante, mas meu.

E minha voz e cantiga?

Meu verso, meu dom

De poesia, sortilégio, vida?

Ah, leva-os contigo.

Por mim.

Hilda Hilst em Da Morte.Odes Mínimas, Editora Globo.

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ODE, 3

Chorai, Vênus, Cupidos e homens, quantos

venerem a beleza, ó vós, chorai

a morte do pardal da minha amada,

pardal que era o prazer da minha amada

e que ela amava mais que aos próprios olhos,

porque era doce, conhecia a dona

como conhece a mãe, uma menina

e não saía nunca do seu colo,

onde, pulando sem parar de um lado

ao outro, só piava para ela.

E agora ele se foi na tenebrosa

jornada da qual – dizem – ninguém volta.

Maldita sejas, por tragares tudo

que é belo, maldita treva do Orco

que me privaste de um pardal tão belo!

Oh, maldição! Coitado do pardal!

Por tua causa a amada está com olhos

inchados e vermelhos de chorar.

Catulo (c. 84 – c. 54 a. C.), em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.

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À MORTE DE LAURA - 3

Quanta inveja me dás, avara terra

Por abraçá-la e deixar-me tolhido

Da visão de seu vulto assaz querido

E onde paz encontrou a minha guerra.

Invejo o céu que no seu seio encerra

E tão cupidamente há recolhido

O espírito da carne desprendido.

E ele para outrem raro se descerra!

Invejo as almas que ora têm por sorte

A sua companhia tão querida

E que eu sempre busquei com tanta flama.

Invejo a impiedosa e aura morte,

Tendo levado co’ ela a minha vida

Que estava nos seus olhos, não me chama.

Petrarca, em Poemas de Amor, organização de Alexei Bueno, tradução de Jamir Almansur Haddad, Ediouro.

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GOTÁN

Essa mulher se parecia à palavra nunca,

de sua nuca subia um encanto particular

uma espécie de esquecimento onde guardar os olhos,

essa mulher se instalava em meu lado esquerdo.

Atenção atenção eu gritava atenção

mas ela invadia como o amor, como a noite,

os últimos sinais que fiz para o outono

deitaram-se tranquilos debaixo da maré de suas mãos.

Dentro de mim explodiram ruídos secos,

caíam aos pedaços a fúria, a tristeza,

a senhora chovia docemente

sobre meus ossos parados na solidão.

Quando partiu eu tiritava feito um condenado,

com um punhal brusco me matei,

vou passar a morte inteira estendido com seu nome,

ele moverá minha boca pela última vez.

Juan Gelman, em Amor que serena, termina?, tradução e seleção de Eric Nepomuceno, Editora Record (edição bilíngüe).

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CANÇÃO ELEGÍACA

Quando os teus olhos fecharem

Para o esplendor deste mundo,

Num chão de cinza e fadigas

Hei de ficar de joelhos;

Quando os teus olhos fecharem

Hão de murchar as espigas,

Hão de cegar os espelhos.

Quando os teus olhos fecharem

E as tuas mãos repousarem

No peito frio e deserto,

Hão de morrer as cantigas;

Irá ficar desde sempre,

Entre ilusões inimigas,

Meu coração descoberto.

Ondas do mar – traiçoeiras –

A mim virão, de tão mansas,

Lamber os dedos da mão;

Serenas e comovidas

As águas regressarão

Ao seio das cordilheiras;

Quando os teus olhos fecharem

Hão de sofrer ternamente

Todas as coisas vencidas,

Profundas e prisioneiras;

Hão de cansar as distâncias,

Hão de fugir as bandeiras.

Sopro da vida sem margens,

Fase de impulsos extremos,

O teu hálito irá indo,

Longe e além reproduzindo,

Como um vento que passasse

Em paisagens que não vemos;

Nas paisagens dos pintores

Comovendo os girassóis

Perturbando os crisantemos.

O teu ventre será terra

Erma, dormente e tranquila

De savana e de paul;

Tua nudez será fonte,

Cingida de aurora verde,

A cantar saudade pura

De abril, de sonho, de azul

Fechados no anoitecer.

Joaquim Cardozo, em Poesias Completas, Editora Civilização Brasileira/INL. E em Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, seleção de José Nêumanne Pinto, Geração Editorial.

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Se apartada do corpo a doce vida,

Domina em seu lugar a dura morte,

De que nasce tardar-me tanto a morte

Se ausente da alma estou, que me dá vida?

Não quero sem Silvano já ter vida,

Pois tudo sem Silvano é viva morte,

Já que se foi Silvano, venha a morte,

Perca-se por Silvano a minha vida.

Ah! Suspirado ausente, se esta morte

Não te obriga querer vir dar-me vida,

Como não ma vem dar a mesma morte?

Mas se na alma consiste a própria vida,

Bem sei que se me tarda tanto a morte,

Que é porque sinta a morte de tal vida.

Soror Violante do Céu (1603-1692), em Fénix Renascida ou Obras Poéticas dos Melhores Engenhos Portugueses, publicado sob a direção de Matias Pereira da Silva em cinco volumes, de 1716 a 1728.

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1.

lembrem de mim

como de um

que ouvia a chuva

como quem assiste missa

como quem hesita, mestiça,

entre a pressa e a preguiça

2.

já me matei faz muito tempo

me matei quando o tempo era escasso

e o que havia entre o tempo e o espaço

era o de sempre

nunca mesmo o sempre passo

morrer faz bem à vista e ao baço

melhora o ritmo do pulso

e clareia a alma

morrer de vez em quando

é a única coisa que me acalma

3.

um homem com uma dor

é muito mais elegante

caminha assim de lado

como se chegando atrasado

andasse mais adiante

carrega o peso da dor

como se portasse medalhas

uma coroa um milhão de dólares

ou coisa que os valha

ópios édens analgésicos

não me toquem nessa dor

ela é tudo que me sobra

sofrer, vai ser minha última obra

Paulo Leminski, em Melhores Poemas, seleção de Fred Góes, Editora Global, 1996.

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ESCRITO NUM LIVRO ABANDONADO EM VIAGEM

Venho dos lados de Beja.

Vou para o meio de Lisboa.

Não trago nada e não acharei nada.

Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,

E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro.

Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto:

Fui, como ervas, e não me arrancaram.

Álvaro de Campos, em Poesia Completa de Álvaro de Campos (edição de bolso), Companhia das Letras.

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COGITO

eu sou como eu sou

pronome

pessoal intransferível

do homem que iniciei

na medida do impossível

eu sou como eu sou

agora

sem grandes segredos dantes

sem novos secretos dentes

nesta hora

eu sou como eu sou

presente

desferrolhado indecente

feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou

vidente

e vivo tranquilamente

todas as horas do fim.

Torquato Neto, em Os Últimos Dias de Paupéria (organização de Ana Maria Silva Duarte e Waly Salomão, Editora Max Limonad, 1984. Ou então em Torquatáli, Obra Reunida de Torquato Neto, volumes 1 e 2, organização de Paulo Toberto Pires, Editora Rocco, 2005.

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UM AVIADOR IRLANDÊS

PREVÊ A MORTE

Encontrarei meu fim no meio

das nuvens de algum céu sobejo;

os que combato, eu não odeio,

também não amo os que protejo;

Kiltartan Cross é meu país,

seus pobres são a minha gente,

nada a fará mais infeliz

do que já era, ou mais contente.

Não é por lei ou por dever,

turba ou políticos, que luto,

mas pelo afã de me entreter,

a sós, nas nuvens em tumulto.

Tudo na mente foi pesado:

nada que espere ou que recorde

vale-me a pena comparado

com esta vida ou esta morte.

W. B. Yeats (1865-1939), em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.

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CANÇÃO PARA A MINHA MORTE

Bem que filho do Norte

Não sou bravo nem forte.

Mas, como a vida amei

Quero te amar, ó morte,

- Minha morte, pesar

Que não te escolherei.

Do amor tive na vida

Quanto amor pode dar:

Amei não sendo amado,

E sendo amado, amei.

Morte, em ti quero agora

Esquecer que na vida

Não fiz senão amar.

Sei que é grande maçada

Morrer mas morrerei

- Quando fores servida -

Sem maiores saudades

Desta madrasta vida,

Que, todavia, amei.

Manuel Bandeira, em Estrela da Vida Inteira, Editora Nova Fronteira.

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eu

estou

te pedindo

querida é pra

que mais poderia um

não mas não é o que

claro mas você não parece

entender que eu não posso ser

mais claro a guerra não é o que

imaginamos mas por favor pelo amor de oh!

que diabo sim é verdade que fui

eu mas esse eu não sou eu

você não vê que agora não nem

sequer cristo mas você

precisa compreender

como porque

eu estou

morto

e. e. cummings, em poem(a)s, tradução de Augusto de Campos, editora Francisco Alves.

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SE EU MORRESSE AMANHÃ

Se eu morresse amanhã, viria ao menos

Fechar meus olhos minha triste irmã;

Minha mãe de saudades morreria

Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!

Que aurora de porvir e que manhã!

Eu perdera chorando essas coroas

Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n'alva

Acorda a natureza mais louçã!

Não me batera tanto amor no peito

Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora

A ânsia de glória, o dolorido afã...

A dor no peito emudecera ao menos

Se eu morresse amanhã!

Álvares de Azevedo, em Roteiro Lioterário de Portugal e do Brasil, tomo II, de Álvaro Lins e Aurélio Braque de Hollanda, Editora Civilização Brasileira, 1966.

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“SE NOSSA VIDA...”

Se nossa vida é menos do que um dia

na eternidade e o tempo em disparada

nos corre os dias e os reduz a nada,

pois quando nasce é coisa fugidia,

no que meditas e por que te agrada,

minh’alma, o breu desta prisão sombria

quando o teu dorso alado propicia

que ascendas à mais lúcida morada?

Dispõe-se lá de amor e de prazer,

da paz pela qual todo mundo anseia,

do bem que todo espírito requer.

É lá que poderás, minh’alma, no alto

do céu, reconhecer a própria Ideia

da beleza que eu neste mundo exalto.

Joachim du Bellay (1525-1560), em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.

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A RUA DOS CATAVENTOS

Da vez primeira em que me assassinaram,

Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.

Depois, a cada vez que me mataram,

Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meus cadáveres eu sou

O mais desnudo, o que não tem mais nada.

Arde um toco de Vela amarelada,

Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!

Pois dessa mão avaramente adunca

Não haverão de arrancar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!

Que a luz trêmula e triste como um ai,

A luz de um morto não se apaga nunca!

Mario Quintana, em Poesia Completa, Editora Nova Aguilar, 2005.

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INSCRIÇÃO QUE SE

ENCONTRA SOBRE SEU TÚMULO

Eu finalmente me afastei

De tudo que há de natural

Posso morrer mas não pecar

E o que ninguém jamais tocou

Não só toquei como apalpei

Já perscrutei o que ninguém

Nunca sequer imaginou

E sopesei vezes sem conta

Até a vida imponderável

Se vou morrer, morro sorrindo

Guillaume Apollinaire (1880-1918), em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.

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TESTAMENTO

Quando acabar-se a piada trágica

Juntem-me a ossada, façam-na em pó,

E a uma ampulheta brilhante e mágica

Vazem-no inteiro, sem sentir dó.

Que assim prossiga como viveu,

E encarcerado na insossa hora

Role sem rumo, tal como eu,

E veja a vida, mas só de fora.

E isto já basta... O sol brilhará,

E ornado em tempo o pó não descansa.

Oh! Ele rirá! E bem vos roerá

Homens de um dia... Bela vingança!

Alexei Bueno, em Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, seleção de José Nêumanne Pinto, Geração Editorial.

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MOSTRA COMO

TUDO LEMBRA-NOS DA MORTE

Olhei o forte muro que cingia

minha cidade e o vi desmoronado,

pelo correr dos anos fatigado,

anos que abatem sua valentia.

Saindo ao campo, vi que o sol bebia

cada arroio dos gelos desatado

e das montanhas se queixar o gado,

que a luz furtaram com penumbra ao dia.

Entrando em casa vi que, deslustrada

de uma ancestral morada era os espólios,

vi meu bordão mais curvo e menos forte,

senti rendida aos anos minha espada

e nada achei no que pousar meus olhos

que não fosse recordação da morte.

Francisco de Quevedo e Villegas (1580-1645), em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.

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VEM, DOCE MORTE

Vem, doce morte. Quando queiras.

Ao crepúsculo, no instante em que as nuvens

desfilam pálidos casulos

e o suspiro das árvores - secreto -

não é senão prenúncio

de um delicado acontecimento.

Quanto queiras. Ao meio-dia, súbito

espetáculo deslumbrante e inédito

de rubros panoramas abertos

ao sol, ao mar, aos montes, às planícies

com celeiros refertos e intocados.

Quando queiras. Presentes as estrelas

ou já esquivas, na madrugada

com pássaros despertos, à hora

em que os campos recolhem as sementes

e os cristais endurecem de frio.

Tenho o corpo tão leve (quando queiras)

que a teu primeiro sopro cederei distraída

como um pensamento cortado

pela visão da lua

em que acaso - mais alto - refloresça.

Henriqueta Lisboa, em Flor da Morte, Editora da UFMG, 2004.

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MEDO DA MORTE

Que há comigo agora,

é assim que eu fiquei?

Não há estado livre dos limites

do antes e depois? Hoje a janela está aberta

e o ar jorra para dentro com notas de piano

nas suas saias, como a dizer, “Olha, John,

eu trouxe isso e aquilo - ou seja,

alguns Beethovens, uns Brahms,

uma notas escolhidas de Poulenc... Sim,

está voltando a ficar livre, o ar, tem que seguir

voltando, pois é só para isso que serve.

Quero ficar com ele por causa do medo

que me impede de subir certos degraus,

bater em certas portas, medo de envelhecer

sozinho, e de não encontrar ninguém no fim da tarde

do caminho, salvo outro eu mesmo

cumprimentando bruscamente: “Você andou por aí

mas estamos juntos novamente, que é o que conta.”

Ar em meu caminho, você poderia encurtar isso,

mas a brisa cessou e o silêncio é a última palavra.

John Ashbery (1927), em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.

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ANÚNCIO FÚNEBRE

a morte em mim não mata nada

a não ser o corpo

ela de mim não leva nada

a não ser o morto

Ronaldo Santos

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“SOL, MEU SOL”

Sol, meu sol, astro radiante,

sol, meu sol, astro de luto,

muito orvalho impregna a relva,

meu sofrer também é muito.

Toda relva está ceifada

e meu âmago, fanado

como o da relva que ceifam

e empilham, seca, no prado.

Percorrendo a terra negra,

tive só mágoa e desgosto:

cai-me bem agora o luto

que eu jamais teria posto.

Mastigo o pão da orfandade

Perscrutando terra e céu:

e entre terra e céu não vejo

ninguém mais órfão que eu.

Sou órfão não só de pai,

mas de mãe, e estou sozinho,

como – sete vezes órfão –

sem parceira o passarinho.

Minha amada foi embora:

siga em paz por onde for;

deito-me num leito, o luto,

com meu travesseiro, a dor.

Separei-me de uma moça

linda como a flor mais linda:

triste vida, triste morte;

mas não quero a morte ainda.

Balada popular húngara, em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.

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?

quem me será

quando eu não for

?

lembrança chorada na flor

foto achada ao acaso

bilhete

incômodo

que nem se sabe que é dor

?

o que todo mundo diz

mas do jeito que eu falava

?

as mentiras que contei

dando a minha palavra

?

algo ficará em quem vem

que me será

quando eu já nem

?

Cesar Cardoso, em coisa diacho tralha, inédito.

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VIAGEM NA FAMÍLIA

No deserto de Itabira

a sombra de meu pai

tomou-me pela mão.

Tanto tempo perdido.

Porém nada dizia.

Não era dia nem noite.

Suspiro? Vôo de pássaro?

Porém nada dizia.

Longamente caminhamos.

Aqui havia uma casa.

A montanha era maior.

Tantos mortos amontoados,

o tempo roendo os mortos.

E nas casas em ruína,

desprezo frio, umidade.

Porém nada dizia.

A rua que atravessava

a cavalo, de galope.

Seu relógio. Sua roupa.

Seus papéis de circunstância.

Suas histórias de amor.

Há um abrir de baús

e de lembranças violentas.

Porém nada dizia.

No deserto de Itabira

as coisas voltam a existir,

irrespiráveis e súbitas.

O mercado de desejos

expõe seus tristes tesouros:

meu anseio de fugir;

mulheres nuas; remorso;

Porém nada dizia.

Pisando livros e cartas,

viajamos na família.

Casamentos; hipotecas;

os primos tuberculosos;

a tia louca; minha avó

traída com as escravas,

rangendo sedas na alcova.

Porém nada dizia.

Que cruel, obscuro instinto

movia sua mão pálida

sutilmente nos empurrando

pelo tempo e pelos lugares

defendidos?

Olhei-o nos olhos brancos.

Gritei-lhe: Fala! Minha voz

vibrou no ar um momento,

bateu nas pedras. A sombra

prosseguia devagar

aquela viagem patética

através do reino perdido.

Porém nada dizia.

Vi mágoa, incompreensão

e mais de uma velha revolta

a dividir-nos no escuro.

A mão que eu não quis beijar,

o prato que me negaram,

recusa em pedir perdão.

Orgulho. Terror noturno.

Porém nada dizia.

Fala fala fala fala.

Puxava pelo casaco

que se desfazia em barro.

Pelas mãos, pelas botinas

prendia a sombra severa

e a sombra se desprendia

sem fuga nem reação.

Porém ficava calada.

E eram distintos silêncios

que se entranhavam no seu.

Era meu avô já surdo

querendo escutar as aves

pintadas no céu da igreja;

a minha falta de amigos;

a sua falta de beijos;

eram nossas difíceis vidas

e uma grande separação

na pequena área do quarto.

A pequena área da vida

me aperta contra seu vulto,

e nesse abraço diáfano

é como se eu me queimasse

todo, de pungente amor.

Só hoje nos conhecermos!

Óculos, memórias, retratos

fluem no rio do sangue.

As águas já não permitem

distinguir seu rosto longe,

para lá de setenta anos...

Senti que me perdoava

porém nada dizia.

As águas cobrem o bigode,

a família, Itabira, tudo.

Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética, Editora Record.

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PROFUNDAMENTE

Quando ontem adormeci

Na noite de São João

Havia alegria e rumor

Estrondos de bombas luzes de Bengala

Vozes cantigas e risos

Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei

Não ouvi mais vozes nem risos

Apenas balões

Passavam errantes

Silenciosamente

Apenas de vez em quando

O ruído de um bonde

Cortava o silêncio

Como um túnel

Onde estavam os que há pouco

Dançavam

Cantavam

E riam

Ao pé das fogueiras acesas?

– Estavam todos dormindo

Estavam todos deitados

Dormindo

Profundamente

Quando eu tinha seis anos

Não pude ver o fim da festa de São João

Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo

Minha avó

Meu avô

Totônio Rodrigues

Tomásia

Rosa

Onde estão todos eles?

– Estão todos dormindo

Estão todos deitados

Dormindo

Profundamente.

Manuel Bandeira, em Estrela da Vida Inteira, Editora Nova Fronteira.

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SOBRE A MORTE DO PAI

e o líquido da voz pelas paredes

e a memória guardada na areia

e a garganta sem fim por onde vai

a não hora – aquela que é exata

Moacir Amâncio, em Esses Poetas – Uma antologia dos Anos 90, organização de Heloísa Buarque de Hollanda, editora Aeroplano.

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O MENINO DA SUA MÃE

No plaino abandonado

Que a morna brisa aquece,

De balas trespassado -

Duas, de lado a lado-,

Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.

De braços estendidos,

Alvo, louro, exangue,

Fita com olhar langue

E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!

(agora que idade tem?)

Filho único, a mãe lhe dera

Um nome e o mantivera:

«O menino de sua mãe.»

Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve.

Dera-lhe a mãe. Está inteira

E boa a cigarreira.

Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada

Ponta a roçar o solo,

A brancura embainhada

De um lenço… deu-lho a criada

Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:

“Que volte cedo, e bem!”

(Malhas que o Império tece!)

Jaz morto e apodrece

O menino da sua mãe.

Fernando Pessoa, em Obra Poética, Editora Nova Aguilar.

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A MINHA IRMÃ

Depois que a dor, depois que a desventura

Caiu sobre o meu peito angustiado,

Sempre te vi, solícita, a meu lado,

Cheia de amor e cheia de ternura.

É que em teu coração ainda perdura,

Entre doces lembranças conservado,

Aquele afeto simples e sagrado

De nossa infância, ó meiga criatura.

Por isso aqui minh'alma te abençoa:

Tu foste a voz compadecida e boa

Que no meu desalento mo susteve.

Por isso eu te amo e, na miséria minha,

Suplico aos céus que a mão de Deus te leve

E te faça feliz, minha irmãzinha...

Clavedel, 1913

Manuel Bandeira, em Estrela da Vida Inteira, Editora Nova Fronteira.

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LISURA

Entras na morte,

como se entra em casa,

desvestindo a carne,

pondo teus chinelos

e pijama velho.

Entras na morte,

como alguém que parte

para uma viagem:

não se sabe o norte

mas começa agora.

Entras na morte,

sem escuros,

sem punhais ocultos

sob o teu orgulho.

Entras na morte,

limpo

de cuidados breves;

como alguém que dorme

na varanda enorme,

entras na morte.

Carlos Nejar , em Obra Poética, Nova Fronteira, 1980.

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POEMA DE FINADOS

Amanhã que é dia dos mortos

Vai ao cemitério. Vai

E procura entre as sepulturas

A sepultura de meu pai.

Leva três rosas bem bonitas.

Ajoelha e reza uma oração.

Não pelo pai, mas pelo filho:

O filho tem mais precisão.

O que resta de mim na vida

É a amargura do que sofri.

Pois nada quero, nada espero.

E em verdade estou morto ali.

Manuel Bandeira em Poesia Completa e Prosa, Cia. José Aguilar, 1967.

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O HOMEM E A MORTE

O homem já estava deitado

Dentro da noite sem cor.

Ia adormecendo, e nisto

À porta um golpe soou.

Não era pancada forte.

Contudo, ele se assustou,

Pois nela uma qualquer coisa

De pressago adivinhou.

Levantou-se e junto à porta

- Quem bate? Ele perguntou.

- Sou eu, alguém lhe responde.

- Eu quem? Torna. – A Morte sou.

Um vulto que bem sabia

Pela mente lhe passou:

Esqueleto armado de foice

Que a mãe lhe um dia levou.

Guardou-se de abrir a porta,

Antes ao leito voltou,

E nele os membros gelados

Cobriu, hirto de pavor.

Mas a porta, manso, manso,

Se foi abrindo e deixou

Ver – uma mulher ou anjo?

Figura toda banhada

De suave luz interior.

A luz de quem nesta vida

Tudo viu, tudo perdoou.

Olhar inefável como

De quem ao peito o criou.

Sorriso igual ao da amada

Que amara com mais amor.

- Tu és a Morte? Pergunta.

E o Anjo torna: - A Morte sou!

Venho trazer-te descanso

Do viver que te humilhou.

-Imaginava-te feia,

Pensava em ti com terror...

És mesmo a Morte? Ele insiste.

- Sim, torna o Anjo, a Morte sou,

Mestra que jamais engana,

A tua amiga melhor.

E o Anjo foi-se aproximando,

A fronte do homem tocou,

Com infinita doçura

As magras mãos lhe cerrou...

Era o carinho inefável

De quem ao peito o criou.

Era a doçura da amada

Que amara com mais amor.

Manuel Bandeira, em Estrela da Vida Inteira, Editora Nova Fronteira.

+ + + + + +

o leite, derramado

a manteiga, derretida,

a morte, no escorredor

secando a vida

Alice Barreira, em meu ódio diário, editora Terras Que Inventei, 2005.

+ + + + + +

O CAIXÃO

Parem todos os relógios, desliguem o telefone,

Evitem o latido do cachorro com seu osso suculento,

Silenciem os pianos e com tambores lentos

Tragam o caixão, deixem que o luto chore.


W.H.Auden

Cerejeira, imbuia, pinho. Ou mogno. Madeira maciça, com ou sem visor. A cor: marrom, rajado, revestido com verniz. Alto brilho. Cintilante, reluzente. Coisa fina. Entalhado a mão, artisticamente, com todo o capricho. Detalhe a detalhe. Alça: varão, em ouro metalizado, é claro. Tampa com pintura à base de craquelê. No interior, um luxo só. Revestimento de tecido matelassê. Ainda tem mais: babado, sobrebabado, travesseiro solto, renda, véu. Assim, nesse conforto, nem dá vontade de voltar, subir.

E ir para o céu.

O caixão é um presente. Pensado, escolhido e comprado. Casa com todos os gostos, seja qual for o freguês. Diferentes formas, tamanhos e modelos.

É case de guitarra para músicos.

Estojo de pincéis para pintores.

Caixa de ferramentas para engenheiros.

O caixão é um móvel. Criado-mudo servindo sono profundo. Decora. Adorna. Enfeita o subsolo. É mesa, gaveta, armário. Um baú de relíquias e oferendas. É um tesouro enterrado. Uma árvore, uma raiz. Semente germinando por dentro. É fertilizado com matéria orgânica. É o vaso que acomoda o desabrochar das bactérias. O florescer dos fungos. O evoluir das larvas.

O caixão envolve nascimentos.

Nos velórios, funerais, o caixão fica frio. Segura as pontas. Mantém o controle. É um abraço de condolências no próprio morto. O caixão carrega. Consola. Conduz. Calça o corpo. O caixão não arreda o pé. Permanece firme, acoplado ao tronco, até os últimos bocados de existência. Até virar uma caixa, um container povoado por ossos e dentes.

O caixão guarda o que resta.

Não joga fora o que sobra.

O caixão é considerado. Agraciado. Reverenciado. Recebe coroas, arranjos, honras de estado. É seguido por um séquito. Homenageado com cantos, réquiens, missas e tiros de fuzil. É acariciado por familiares, amigos e desafetos. O caixão é um transporte transportado. É andor que segue devagar. É carro de bombeiro cercado pela multidão.

O caixão tem chofer particular.

O caixão é um retiro. Uma cama definitiva. Uma câmara, um camarote. É um aposento utilizado por quem quer se recolher. De vez. O único, talvez, em que ninguém pode entrar para perturbar. O caixão é um cômodo. Um recinto. É a sala de escritório onde o telefone não toca. O funcionário não vem pedir aumento. A secretária não vem trazer problemas. O caixão é, finalmente, ter o próprio gabinete. Com o nome escrito na placa.

O caixão é o útero. Que adota o feto natimorto. É um fetiche. Uma bandeja, um banquete de necrófilos. O caixão é uma garrafa térmica. Que conserva a temperatura fria do cadáver. O caixão encerra. É fase que passa. Tempo que corre. Tampa que fecha.

É o número ousado. Do mágico preso na urna. Agachado, encolhido, acorrentado.

O caixão é uma cápsula de fuga.

Raphael Ganz, em Contrabandos, Selo Edith. www.visiteeddith.com e raphaelganz@gmail.com

+ + + + + +

AQUERÔNTICO

É de noite que os mortos voltam

em sua barca de papel

a roçar a porta do sono

em que inermes escurecemos

mais um dia – pulmão de chama

contraindo a luz da manhã!

É de noite pela amurada

que vêm se debruçar conosco

e indulgem – apenas sorriem

sem qualquer resguardo, sem ênfase –

em ir e vir, em ter partido.

Impressões de viagem? Alheias

Como a do perfil de um dracma.

Remiram-nos maliciosos

pensos de ternura se quedam

em sua fosca primavera,

atrás de embaciados acenos,

pacientes, à nossa espera.

Lélia Coelho Frota, em Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, seleção de José Nêumanne Pinto, Geração Editorial.

+ + + + + +

ISMÁLIA

Quando Ismália enlouqueceu,

Pôs-se na torre a sonhar...

Viu uma lua no céu,

Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,

Banhou-se toda em luar...

Queria subir ao céu,

Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,

Na torre pôs-se a cantar...

Estava perto do céu,

Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu

As asas para voar...

Queria a lua do céu,

Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu

Ruflaram de par em par...

Sua alma subiu ao céu,

Seu corpo desceu ao mar...

Alphonsus de Guimaraens, em Poesias, volume 1, Simões. E em Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, seleção de José Nêumanne Pinto, Geração Editorial.

+ + + + + +

IMPOSIÇÃO

morria de medo da morte

resolveu matar a morte

sangrou a morte de morte

um punhal fino e cruento

e a morte não morreu

(jogou o punhal na cova)

condenou a morte à forca

eis o que aconteceu

a corda que ele usava

com toda força que tinha

enrolou-se-lhe ao pescoço

(ficou no maior sufoco)

ofereceu-lhe veneno

um copo cheio de morte

a morte bebeu a morte

e a morte não morreu

brincava a morte com o gelo

(existe a lei do mais forte)

líria porto

+ + + + + +

a morte – I

única vez dentro do caixão

sem nenhum ensaio

mas todos

com a postura de veteranos

a morte – II

em pé os olhares fixos

frente à face de porcelana

tentam flagrar alguma fresta

do outro lado da vida

Salvino Pires Sobrinho, em Quatro Estações, a ser publicado este ano.

+ + + + + +

Vozes de uma dama desvanecida de dentro de uma sepultura que fala a outra dama que presumida entrou em uma igreja com os cuidados de ser vista e louvada de todos; e se assentou junto a um túmulo que tinha este epitáfio que leu curiosamente

Ó tu, que com enganos divertida

Vives do que hás-de ser tão descuidada,

Aprende aqui lições de escarmentada,

Ostentarás acções de prevenida.

Considera que em terra convertida

Jaz aqui a beleza mais louvada,

E que tudo o da vida é pó, é nada,

E que menos que nada a tua vida.

Considera que a morte rigorosa

Não respeita beleza nem juízo

E que, sendo tão certa, é duvidosa.

Admite deste túmulo o aviso

E vive do teu fim mais cuidadosa,

Pois sabes que o teu fim é tão preciso.

Soror Violante do Céu (1602-1693), em Fénix Renascida ou Obras Poéticas dos Melhores Engenhos Portugueses, publicado sob a direção de Matias Pereira da Silva em cinco volumes, de 1716 a 1728, Portugal.

+ + + + + +

V

Remorso manso, sem dentes,

do já vivido e apagado.

Aquele instante, aquele quarto

de hora, aquele desejo indecifrável,

decifrado, é claro, quando já não mais nada.

As mãos esperam, mudas.

E o telefone, gordo como um rei.

A vida não quis esperar.

Memória,

Mãe amorosa de todas as mortes.

Paulo Henriques Brito, em Bonbonnière, do livro trovar Claro. Companhia das Letras.

+ + + + + +

CANÇÃO DO PRISIONEIRO

Mesmo preso em minha cela

reconheço os passos dela.

Não costumo me enganar.

Ela vem bem devagar,

quase parando, e talvez

qualquer dia pare mesmo,

dê uma volta e era uma vez.

Ela finge andar a esmo

e de quatro em quatro passos

arrasta no chão o salto

de um dos seus sapatos altos.

Já está perto. Abro meus braços.

O carcereiro abre a cela

vizinha. Não era ela.

Antonio Cícero, em A Cidade e os Livros, Editora Record.

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SOBRE ROMA

Recém-chegado que, buscando Roma em Roma,

Não encontras, em Roma, Roma alguma,

Olha, ao redor, muro e mais muro, pedras rotas,

ruínas, que assustam, de um teatro imenso:

é Roma isto que vês – cidade tão soberba,

que ainda exala ameaças seu cadáver.

Vencido o mundo, quis vencer-se e, se vencendo,

para que nada mais seguisse invicto,

jaz, na vencida Roma, Roma, a vencedora,

pois Roma é quem venceu e foi vencida.

Só resta, indício do que já foi Roma, o Tibre:

Corrente rápida que corre ao mar.

Assim age a Fortuna: o que há de firme passa

e o que sempre se move permanece.

Janus Vitalis (1485-c.1560), em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.

+ + + + + +

EU, QUE EU POSSA DESCANSAR EM PAZ

Eu, que eu possa descansar em paz

eu, que ainda estou vivo e digo:

que eu possa ter paz no que tenho de vida.

eu quero paz agora mesmo, enquanto ainda estou vivo.

não quero esperar como aquele piedoso que almejava

uma perna do trono de ouro do Paraíso. Quero uma cadeira

de quatro pernas, aqui mesmo, uma cadeira simples de madeira.

Quero o resto de minha paz agora.

Vivi minha vida em guerras de toda espécie: batalhas dentro e fora,

combate cara a cara, a cara sempre a minha mesmo,

minha cara de amante, minha cara de inimigo

Guerras com velhas armas, paus e pedras, machado enferrujado, palavras,

rasgão de faca cega, amor e ódio,

e guerra com armas de último forno, metralha, míssil,

palavras, minas terrestres explodindo, amor e ódio.

Não quero cumprir a profecia de meus pais de que vida é guerra

Eu quero paz com todo meu corpo e em toda minha alma.

Descansem-me em paz...

Yehuda Amichai (1924-2000), em tradução de Millôr Fernandes.

+ + + + + +

Restos de comida desenham a silhueta

Do manicômio

E eis que aqui sai um homem

A recolher as fezes.

Eis aqui os homens que a vida mastigou.

A morte, a única que não mastiga.

Leopoldo Maria Panero, em Poesía Completa (1970-2000), editado por Túa Blesa e pela editora Visor Libros. Este poema está na revista Coyote N. 21, em tradução de Vinícius Lima. Pedidos para revistacoyote@uol.com.br ou wm www.iluminuras.com.br .

+ + + + + +

VIGÍLIA

Cima Quatro, 23 de dezembro de 1915

Toda uma noite em claro

caído ao lado

de um companheiro

massacrado

com sua boca

arreganhada

exposta à lua cheia

com o hematoma

de suas mãos

cravado

em meu silêncio

escrevi

cartas cheias de amor

Não tinha nunca estado

tão

aferrado à vida

Giuseppe Ungaretti (1888-1970), em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.

+ + + + + +

VÁLIDO ATÉ

Acontece

com certas

ideias

filmes

passaportes

remédios

homens

alimentos

critérios

promoções

casamentos

impérios

poemas

contratos

mistérios

carregam

de antemão

o epitáfio:

Augusto Massi, em Esses Poetas – Uma antologia dos Anos 90, organização de Heloísa Buarque de Hollanda, editora Aeroplano.

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I JUCA PIRAMA - CANTO VIII

"Tu choraste em presença da morte?

Na presença de estranhos choraste?

Não descende o cobarde do forte;

Pois choraste, meu filho não és!

Possas tu, descendente maldito

De uma tribo de nobres guerreiros,

Implorando cruéis forasteiros,

Seres presa de vis Aimorés.

"Possas tu, isolado na terra,

Sem arrimo e sem pátria vagando,

Rejeitado da morte na guerra,

Rejeitado dos homens na paz,

Ser das gentes o espectro execrado;

Não encontres amor nas mulheres,

Teus amigos, se amigos tiveres,

Tenham alma inconstante e falaz!

"Não encontres doçura no dia,

Nem as cores da aurora te ameiguem,

E entre as larvas da noite sombria

Nunca possas descanso gozar:

Não encontres um tronco, uma pedra,

Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,

Padecendo os maiores tormentos,

Onde possas a fronte pousar.

"Que a teus passos a relva se torre;

Murchem prados, a flor desfaleça,

E o regato que límpido corre,

Mais te acenda o vesano furor;

Suas águas depressa se tornem,

Ao contacto dos lábios sedentos,

Lago impuro de vermes nojentos,

Donde fujas com asco e terror!

"Sempre o céu, como um teto incendido,

Creste e punja teus membros malditos

E oceano de pó denegrido

Seja a terra ao ignavo tupi!

Miserável, faminto, sedento,

Manitôs lhe não falem nos sonhos,

E do horror os espectros medonhos

Traga sempre o cobarde após si.

"Um amigo não tenhas piedoso

Que o teu corpo na terra embalsame,

Pondo em vaso d'argila cuidoso

Arco e frecha e tacape a teus pés!

Sê maldito, e sozinho na terra;

Pois que a tanta vileza chegaste,

Que em presença da morte choraste,

Tu, cobarde, meu filho não és."

Gonçalves Dias, em http://www.brasiliana.usp.br/goncalves_dias.

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A MÁRIO DE ANDRADE AUSENTE

Anunciaram que você morreu.

Meus olhos, meus ouvidos testemunharam:

A alma profunda, não.

Por isso não sinto agora a sua falta.

Sei bem que ela virá

(Pela força persuasiva do tempo).

Vira súbito um dia,

Inadvertida para os demais.

Por exemplo assim:

À mesa conversarão de uma coisa e outra,

Uma palavra lançada à toa

Baterá na franja dos lutos de sangue,

Alguém perguntará em que estou pensando,

Sorrirei sem dizer que em você

Profundamente.

Mas agora não sinto a sua falta.

(É sempre assim quando o ausente

Partiu sem se despedir:

Você não se despediu.)

Você não morreu: ausentou-se.

Direi: Faz tempo que ele não escreve.

Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.

Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.

Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida?

A vida é uma só. A sua continua

Na vida que você viveu.

Por isso não sinto agora a sua falta.

Manuel Bandeira, em Estrela da Vida Inteira, Editora Nova Fronteira.

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PESSOAL INTRANSFERÍVEL

Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas mãos. Sabendo : perigoso, divino, maravilhoso.

Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, "herdeiro" da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus.

E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão.

Torquato Neto. Publicado na coluna "Geléia Geral", 3a feira, 14/09/71.

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NO TÚMULO DE APOLLINAIRE

...voici le temps

Oú l’on connaîtra l’Avenir

Sans mourir de connaissance

I

Visitei Père Lachaise para procurar os restos mortais de Apollinaire no dia em que o Presidente dos Estados Unidos apareceu na França para a grande conferência dos chefes de estado

é isso aí o aeroporto azul de Orly claridade de primavera no ar de Paris

Eisenhower chegando do seu sepulcro americano

e sobre os túmulos com sapos de Père Lachaise uma ilusória neblina espessa como fumaça de marijuana

Peter Orlovsky e eu caminhamos suavemente por Père Lachaise

ambos sabíamos que iríamos morrer

e assim nos demos nossas temporárias mãos ternamente numa eternidade em miniatura como uma cidade

estradas e sinais pedras e colinas e nomes nas casas de todos

procurando o endereço perdido de um notável Francês do Vazio

para cometer nosso terno crime de homenagear seu abandonado menhir

e deixar meu temporário Uivo Americano no topo do seu silencioso Calligramme

para que ele o lesse nas entrelinhas com olhos de Raio X de poeta

assim como miraculosamente lera sua própria lírica da morte no Sena

espero que algum garotão pirado deixe seu panfleto em meu túmulo para que assim Deus o leia para mim nas frias noites de inverno do céu

nossas mãos já sumiram daquele lugar minha mão agora escreve no quarto de Git-Le-Coeur Paris

Ah, Guilherme que pedregulho você tinha no cérebro o que é a morte

caminhei por todo o cemitério sem conseguir achar seu túmulo

o que você queria dizer com a fantástica atadura craniana dos seus poemas

Ó solene caveira fétida o que tem você para dizer nada e isso nem mesmo é uma resposta

Você não pode dirigir automóveis num túmulo de um metro e oitenta no entanto o universo é um mausoléu grande o bastante para qualquer coisa

o universo é um sepulcro e eu dou voltas sozinho por aqui

sabendo que Apollinaire andou pela mesma rua há 50 anos

sua loucura acaba de dobrar a esquina e Genet está conosco roubando livros

o Ocidente está de novo em guerra e de que será o lúcido suicídio que deixará tudo em ordem outra vez

Guillaume Guillaume como invejo sua fama sua contribuição para as letras americanas

seu Zone com suas longas linhas loucas de besteiras sobre a morte

sai para fora do seu túmulo e fala pela porta da minha mente

solta novas séries de imagens hai-kus oceânicos táxis azuis em Moscou negras estátuas de Buda

reza por mim na gravação fonográfica da sua existência anterior

com uma voz pausada e triste e com versos de uma profunda música suave triste e estridente como a 1ª Guerra Mundial

eu comi as cenouras azuis que você me mandou do túmulo e a orelha de Van Gogh e o Peiote desvairado de Artaud

e caminharei pela ruas de Nova York envolto no manto negro da Poesia Francesa

fazendo improvisos sobre nossa conversa no Père Lachaise em Paris

e o poema do futuro que recebe sua inspiração da luz que escorre para dentro do seu túmulo

II

Aqui em Paris sou teu hóspede Ó sombra amistosa

a mão ausente de Max Jacob

Picasso jovem me passa uma bisnaga de Mediterrâneo

eu presente ao antigo banquete vermelho de Rousseau eu comi seu violino

grande festa no Bateau Lavoir não mencionada nos livros de texto sobre a Argélia

Huidobro esquecido no ósseo oceano Ungaretti recordando o branco pêlo púbico

Tzara no Bois de Boulogne explicando a alquimia das metralhadoras de cucos

ele chora ao traduzir-me para o sueco

bem vestido de gravata violeta e calças pretas

uma doce barba ruiva que emerge do seu rosto como o musgo que pende pelas paredes do Anarquismo

ele me contou infindavelmente suas brigas com André Breton

a quem um dia ajudara a aparar o bigode dourado

o velho Blaise Cendrars recebeu-me em seu estúdio e me falou cansado da imensidão da Sibéria

Jacques Vaché me convidou para examinar sua terrível coleção de pistolas

o pobre Cocteau amargurado por causa do outrora maravilhoso Radiguet diante do seu último pensamento eu desmaiei

Rigaut com uma carta de apresentação para a Morte

e Gide que elogiou o telefone e outras notáveis invenções

em princípio concordamos apesar da sua conversa de roupa de baixo de lavanda

mas mesmo assim ele bebeu para valer da erva de Whitman e se mostrou intrigado com todos os amantes chamados Colorado

príncipes da América chegando com braçadas de Shrapnel e baseball

Ah Guillaume o mundo era tão fácil de combater parecia tão fácil

você sabia que os grandes classicistas políticos iriam invadir Montparnasse

com nenhuma coroa de louro profético para reverdecer suas testas

nenhum ramo verde nos seus travesseiros nenhuma folha das suas guerras – Maiakovski chegou e revoltou-se

III

Voltei sentei-me num túmulo e fiquei encarando teu tosco menhir

um pedaço de granito delgado como um falo inacabado

uma cruz apagada na pedra 2 poemas na lápide um Coeur Renversé

outro Habituez-vous comme moi A ces prodiges que j’annonce

Guillaume Apollinaire de Kostrowitsky

alguém deixou um pote de geleia com margaridas e uma rosa surrealista de louça de datilógrafa a 5 ou 10 centavos

alegre túmulo pequeno com flores e coração virado

debaixo de uma delicada árvore musgosa sob a qual me sentei tronco tortuoso

ramagens de verão e cobertura de folhagens sobre o menhir e ninguém lá

Et quelle voix sinistre ulule Guillaume qu’es-tu devenu

seu vizinho ao lado é uma árvore

lá embaixo os ossos cruzados amontoados e talvez o crânio amarelo

e os poemas impressos Álcools no meu bolso sua voz no museu

Agora passadas de meia-idade percorrem o cascalho

um homem encara o nome e segue na direção do crematório

o mesmo céu rola entre as nuvens assim como nos dias mediterrâneos da Riviera durante a guerra

enamorado Apolo bebendo comendo ocasionalmente ópio recebendo a luz

Devem ter sentido o choque em St. Germain quando ele partiu Jacob & Picasso tossindo no escuro

uma atadura desenrolada e o crânio largado quieto na cama dedos grossos esticados o mistério e o ego idos

um sino dobra no campanário rua abaixo pássaros gorjeiam nas castanheiros

a Família Bremond dorme ao lado Cristo dependurado peitudo e sexy no túmulo deles

o cigarro queima no meu colo e enche a página de fumaça e chamas

uma formiga percorre minha manga de veludo cotelê a árvore na qual estou recostado cresce vagarosamente

arbustos e ramagens erguem-se entre os túmulos uma sedosa teia de aranha reluz no granito

eu estou enterrado aqui e sentado sobre meu sepulcro à sombra de uma árvore

Allen Ginsberg, em Uivo – Kaddis e Outros Poemas, prefácio, seleção, tradução e notas de Cláudio Willer, L&PM Editores, 1984.

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JÁ JÁ

Se a morte é mesmo certa

que seja também pra já

mas antes quero ouvir na laranjeira, à tarde,

cantar o sabiá

Se vier na flor dos anos

pois então que venha já

mas antes quero as três mil mulheres maravilhas

do sabonete araxá

A flor da idade floresce?

que venha a morte já já

mas que tenha, tomara, o mesmo perfume

da flor do maracujá

Bem-vinda bem-vinda a morte

Que a morte venha já-já

Cacaso em lero-lero, 7 LETRAS / Cosak & Naify.

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NOVO ENIGMA PARA ÉDIPO

(MONÓLOGO A DUAS VOZES)

É coisa? – Não.

Está vivo? – Sim.

É vegetal? – Não.

É animal? – Sim.

Rasteja? – Às vezes; nem sempre.

Qual é sua postura? – De pé.

Voa? – Cada vez mais.

Assobia? – Às vezes.

Ruge, muge, late, ladra, uiva, ulula? – Sim, quando quer, por imitação.

Sabe fazer ninhos para a cria? – Constrói todo tipo de alvéolos trêmulos.

Cava túneis subterrâneos? – Cada vez mais, porque voa e tem medo.

Alimenta-se de frutas, de plantas? – Sim, porque é frágil.

E de carne? – Muitíssimo, porque é cruel.

Fala – Demais: suas palavras enchem a terra inteira de barulho.

É portanto leão tigre e ao mesmo tempo gado e ao mesmo tempo papagaio gato cachorro macaco toupeira e castor? – Sim sim sim sim tanto isso tudo quanto ele mesmo e todos os outros.

Vive à noite ou de dia? – Vive à noite e de dia. Dorme às vezes de dia e trabalha à noite porque teme os próprios sonhos.

Pode ver e ouvir? – Vê tudo ouve tudo, mas tapa os ouvidos.

Que faz quando trabalha? – Ergue altas muralhas para ocultar o sol. Fala, canta, resmunga para encobrir o estrondo do trovão.

E quando não está fazendo nada? – Esconde-se. Treme com todos os membros sem saber porquê.

Dirige-se rumo a algo, alguém? – Pensa que sim, finge ser chamado, escolhido, coroado.

É mortal? – Julga-se imortal, mas morre.

Gosta da morte? – Detesta-a não a compreende.

Que faz contra a morte detestada? – Multiplica-a dentro e fora de si por toda a terra no mar e no ar, espalha-a nutre-se de vida, isto é, de morte.

Com todo esse massacre, que quer ganhar? – Pensa perder de vista o fim, borrar o horizonte.

Que espera afinal? – Sua morte, sua própria morte.

E quando sua própria morte enfim chega? – Não a reconhece: pensa que é a vida e prosternado chora.

Jean Tardieu (1903-1995), em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.

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CREPUSCULAR – 6

No fim de tudo, restam as palavras.

Na solidão do corpo, no saber-se

apenas pasto para o esquecimento,

há sempre a semente de alguma ilíada

mínima, promessa de permanência

no mármore etéreo de uma sílaba,

mesmo sendo mero sopro, captado

na frágil arquitetura do papel,

alvenaria de ar. Restará

a palavra que deixarmos no fim da

nossa história. Que a julguem os outros,

que chegarão depois. Mais tarde ainda.

Paulo Henriques Brito, em Tarde, Companhia das Letras.

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LOVE AND LET DIE

dificilmente

você vai me ouvir

falar de amor

[aquele que dá certo

e no final das quantas

dá exato

sem restos]

nos meus versos

você vai ver sangue

d e r r a m a d o

que é resultado

de amor aos pedaços

amor que partiu

amor dilacerado

falo de morte premeditada

amor que apunhala

envenena o outro

que rapta tortura e mata

falo muito de aborto

de amor natimorto

ou, se viveu

matou-me aos poucos

valéria tarelho

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BLIND PEW

Longe do mar e do esplendor da guerra

(Que o amor exalta assim o que perdeu),

O bucaneiro cego andava ao léu

Pelas poeirentas trilhas da Inglaterra.

Os cães das granjas lhe ladrando em frente

E os meninos aldeões zombando atrás,

No pó negro das valas, sem ter paz,

Dormia um sono enfermo e intermitente.

Sabia que em remotas praias de ouro

Era seu um recôndito tesouro

E isso aliviava sua adversa sorte;

Incorruptível, noutras praias de ouro,

Aguarda-te também o teu tesouro:

A vasta e vaga e necessária morte.

Rafael Cansinos-Asséns (1882-1964), em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.

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OS VERSOS DA MORTE

14

Morte, faze selar teus cavalos

Para neles pôr os cardeais

Que brilham como carvão!

Apagado: que puras e brilhantes joias!

Dize-lhes isto que fazes aos grandes

Que se agarram mais que cardos

Aos belos presentes e aos grandes dons

(É por isso que levam este nome)

Roma se serve de moedas falsas,

Miúdos e trocos,

Pelo dinheiro dá chumbo:

Como saber o que isto vale?

15

Morte, grita a Roma, grita a Reims:

“Todos estais em minhas mãos,

Pequenos senhores ou potentados,

Abri vossos olhos, cingi vossos rins,

Antes que eu vos meta um freio

E vos faça gritar: ‘Ai de mim!’

Quando corro não é passo a passo!

Meus dados são todos de dois ou de ás,

A fim de que todos vossos golpes sejam vãos.

Muito gozado! Não brinqueis

Porque aquele que me choca entre seus panos

Que se crê forte e sadio”.

Helinand de Froidmont, em Versos da Morte, tradução e apresentação de Heitor Megale, Ateliê Editorial e Editora Imaginário.

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Não busques (é tabu!) saber que fim, Leucónoe,

Os deuses nos reservam. Põe de lado o horóscopo

da Babilônia e aceita: o que há de ser, será

quer nos dê Jove mais invernos, quer só este

que em rochas quebra o mar Tirreno. Vive, bebe

teu vinho e talha, ao curto prazo anseios longos.

Enquanto eu falo, o tempo evade-se, invejoso.

Apanha o dia e não confies no amanhã.

Horácio (65 – 8 a.C.), em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.

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COMO ENCARAR A MORTE

De longe

Quatro bem-te-vis levam nos bicos

o batel de ouro e lápis-lazúli,

e pousando-o sobre uma acácia

cantam o canto costumeiro.

O barco lá fica banhado

de brisa aveludada, açúcar,

e os bem-te-vis, já esquecidos

de perpassar, dormem no espaço.

A meia distância

Claridade infusa na sombra,

treva implícita na claridade?

Quem ousa dizer o que viu,

se não viu a não ser em sonho?

Mas insones tornamos a vê-lo

e um vago arrepio vara

a mais íntima pele do homem.

A superfície jaz tranqüila.

De lado

Sente-se já, não a figura,

passos na areia, pés incertos,

avançado e deixando ver

um certo código de sandálias.

Salvo rosto ou contorno explícito,

como saber que nos procura

o viajante sem identidade?

Algum ponto em nós se recusa.

De dentro

Agora não se esconde mais.

Apresenta-se, corpo inteiro,

se merece nome de corpo

o gás de um estado indefinível.

Seu interior mostra-se aberto.

Promete riquezas, prêmios,

mas eis que falta curiosidade,

e todo ferrão de desejo.

Sem vista

Singular, sentir não sentindo

ou sentimento inexpresso

de si mesmo, em vaso coberto

de resina e lótus e sons.

Nem viajar nem estar quedo

em lugar algum do mundo, só

o não saber que afinal se sabe

e, mais sabido, mais se ignora.

Carlos Drummond de Andrade, em Corpo, editora Record.

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FINAIS

As coisas não explodem,

elas definham, apagam-se,

como se apaga da carne a luz do sol,

como escoa a espuma, rápido na areia,

nem mesmo o relâmpago do amor

termina trovejando,

ele morre com o som

de flores definhando feito a carne

da pedra-pome transpirante,

isso é o que tudo configura

até não nos restar nada além

do silêncio que cinge a cabeça de Beethoven.

Derek Walcott (1930), em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.

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LIÇÃO DE UM GATO SIAMÊS

Só agora sei

que existe a eternidade:

é a duração

finita

da minha precariedade

O tempo fora

de mim

é relativo

mas não o tempo vivo:

esse é eterno

porque afetivo

— dura eternamente

enquanto vivo

E como não vivo

além do que vivo

não é

tempo relativo:

dura em si mesmo

eterno (e transitivo)

Ferreira Gullar, em Muitas vozes, editora José Olympio.

+ + + + + +

A MORTE DO VIZINHO

A morte é assim.

Esvaziam sua casa,

levam todos seus móveis,

o quadro na parede

roubam sua sombra

todo ruído

fica somente

a memória

cativa na janela

se chego em casa.

Heitor Ferraz, em Esses Poetas – Uma antologia dos Anos 90, organização de Heloísa Buarque de Hollanda, editora Aeroplano.

+ + + + + +

Quando eu morrer… não lancem meu cadáver

No fosso de um sombrio cemitério…

Odeio o mausoléu que espera o morto

Como o viajante desse hotel funéreo.

Corre nas veias negras desse mármore

Não sei que sangue vil de messalina,

A cova, num bocejo indiferente,

Abre ao primeiro a boca libertina.

Ei-la a nau do sepulcro – o cemitério…

Que povo estranho no porão profundo!

Emigrantes sombrios que se embarcam

Para as plagas sem fim do outro mundo.

Tem os fogos – errantes – por santelmo.

Tem por velame – os panos do sudário…

Por mastro – o vulto esguio do cipreste,

Por gaivotas – o mocho funerário…

Ali ninguém se firma a um braço amigo

Do inverno pelas lúgubres noitadas…

No tombadilho indiferentes chocam-se

E nas trevas esbarram-se as ossadas…

Como deve custar ao pobre morto

Ver as plagas da vida além perdidas,

Sem ver o branco fumo de seus lares

Levantar-se por entre as avenidas!…

Oh! perguntai aos frios esqueletos

Por que não têm o coração no peito…

E um deles vos dirá “Deixei-o há pouco

De minha amante no lascivo leito.”

Outro: “Dei-o a meu pai”. Outro: “Esqueci-o

Nas inocentes mãos de meu filhinho”…

Meus amigos! Notai… bem como um pássaro

O coração do morto volta ao ninho!…

Castro Alves, em Castro Alves - Obra Completa, organização e notas de Eugênio Gomes, Editora Nova Aguilar, 1960.

+ + + + + +

POEMA DE NATAL

Para isso fomos feitos:

Para lembrar e ser lembrados

Para chorar e fazer chorar

Para enterrar os nossos mortos —

Por isso temos braços longos para os adeuses

Mãos para colher o que foi dado

Dedos para cavar a terra.

Assim será nossa vida:

Uma tarde sempre a esquecer

Uma estrela a se apagar na treva

Um caminho entre dois túmulos —

Por isso precisamos velar

Falar baixo, pisar leve, ver

A noite dormir em silêncio.

Não há muito o que dizer:

Uma canção sobre um berço

Um verso, talvez de amor

Uma prece por quem se vai —

Mas que essa hora não esqueça

E por ela os nossos corações

Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:

Para a esperança no milagre

Para a participação da poesia

Para ver a face da morte —

De repente nunca mais esperaremos...

Hoje a noite é jovem; da morte, apenas

Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes, em "Antologia Poética", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960.

+ + + + + +

SONETOS SAGRADOS - X

Oh, Morte, não te orgulhes, pois ruim

Como dizem não és, medonha e forte;

Quem pensas que abateste, pobre Morte,

Não morre; nem matar podes a mim.

Se o sono, o teu retrato, agrada assim,

Contigo fluirá melhor a sorte;

E o bom, ao conhecer o teu transporte,

Descansa o corpo e se liberta enfim.

Serva de reis, destino, acaso e ânsia,

À droga, à peste e à guerra te associas;

E adormecem-nos ópios e magias

Mais que teu golpe. Então, por que a jactância?

Um breve sono a vida eterna traz.

E vai-se a morte. Morte, morrerás.

John Donne em John Donne, o poeta do amor e da morte, antologia bilíngue, tradução de Paulo Vizioli, J. C. Ismael, Editor.

+ + + + + +

HUIS CLOS

Da vida não se sai pela porta:

só pela janela. Não se sai

bem da vida como não se sai

bem de paixões jogatinas drogas.

E é porque sabemos disso e não

por temer viver depois da morte

em plagas de Dante Goya ou Bosh

(essas, doce príncipe, cá estão)

que tão raramente nos matamos

a tempo: por não considerarmos

as saídas disponíveis dignas

de nós, que em meio a fezes e urina,

sangue e dor nascemos para lendas,

mares, amores, mortes serenas.

Antonio Cícero, em A Cidade e os Livros, Editora Record.

+ + + + + +

ESSE PUNHADO DE OSSOS

A Moacyr Félix

Esse punhado de ossos que, na areia,

alveja e estala à luz do sol a pino

moveu-se outrora, esguio e bailarino,

como se move o sangue numa veia.

Moveu-se em vão, talvez, porque o destino

lhe foi hostil e, astuto, em sua teia

bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia

o que havia de raro e de mais fino.

Foram damas tais ossos, foram reis,

e príncipes e bispos e donzelas,

mas de todos a morte apenas fez

a tábua rasa do asco e das mazelas.

E ali, na areia anônima, eles moram.

Ninguém os escuta. Os ossos não choram.

Ivan Junqueira, em A Sagração dos Ossos, Editora Civilização Brasileira.

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EPITÁFIO PROVISÓRIO

Está completamente morto agora,

lagarto empalhado, múmia do Egito.

Nascido num país em cujos ares

poetas voejavam aos milhares,

ficou no chão, nada fez de inaudito:

disse apenas um verso e foi-se embora.

José Paulo Paes, em Melhores Poemas, Global Editora.

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LÁPIDE 1

epitáfio para o corpo

Aqui jaz um grande poeta.

Nada deixou escrito.

Este silêncio, acredito,

são suas obras completas.

LÁPIDE 2

epitáfio para a alma

aqui jaz um artista

mestre em disfarces

viver

com a intensidade da arte

levou-o ao infarte

deus tenha pena

dos seus disfarces

Paulo Leminski, em La Vie em Close, Editora Brasiliense

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CANÇÃO NOTURNA DO ANDARILHO

No alto das colinas

há paz;

não se ouve, ali

nas frondes, mais

que um sopro manso.

Nem há no bosque um trino. Aguarda:

tampouco tarda

o teu descanso.

Goethe (1749-1832), em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.

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HORÁRIO DO FIM

morre-se nada

quando chega a vez

é só um solavanco

na estrada por onde já não vamos

morre-se tudo

quando não é o justo momento

e não é nunca

esse momento

Mia Couto, em Raiz de Orvalho e Outros Poemas, Editorial Caminho, Portugal, 2001.

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EM SUMA

Navalhas doem,

ácido mancha,

o rio molha,

drogas dão cãibra;

arma é ilegal,

laço desfaz-se,

gás cheira mal.

Viva: é mais fácil.

Dorothy Parker (1893-1978), em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.

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A MORTE ABSOLUTA

Morrer.

Morrer de corpo e de alma.

Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,

A exangue máscara de cera,

Cercada de flores,

Que apodrecerão - felizes! - num dia,

Banhada de lágrimas

Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...

A caminho do céu?

Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,

A lembrança de uma sombra

Em nenhum coração, em nenhum pensamento,

Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente

Que um dia ao lerem o teu nome num papel

Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,

- Sem deixar sequer esse nome.

Manuel Bandeira, em Estrela da Vida Inteira, Editora Nova Fronteira.

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E mail: cesarcar@uninet.com.br

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