Retirado do Cinema & Outras Artes em 22/03/12 do endereço:
http://cinemaeoutrasartes.blogspot.com.br/2012/03/visao-cultural-anacronica-caracteriza.html
Por Maurício Caleiro
A audiência pública de Ana de Hollanda na Comissão de Educação e Cultura (CEC) da Câmara dos Deputados, realizada ao final da manhã de hoje, dissipa qualquer eventual dúvida quando ao anacronismo de sua visão das relações entre cultura e internet.
Foi um espetáculo deprimente: ante arguidores em sua maioria anestesiados, desinteressados, a ministra da Cultura demonstrou não possuir os conhecimentos mínimos requeridos de um gestor cultural em sua posição, ostentando uma postura que choca pelo primarismo – expressado numa visão reducionista da cultura tão-somente enquanto produto cultural comercializável -, pelo conservadorismo – em contraste com o discurso da candidata Dilma – e, sobretudo, pelo atraso intelectual - ficou claro que as concepções de Ana quanto às relações entre produção cultural, mercado e internet apresentam uma defasagem de décadas e não se coadunam com os fluxos culturais que caracterizam o mundo contemporâneo.
A ministra afirmou temer pelo futuro da cultura brasileira devido à pirataria e à internet. Ou seja, para ela, a rede mundial de computadores, cujas imensas possibilidades de produção e circulação cultural são exaltadas por pesquisadores do porte de um Jesus Martín-Barbero, representa uma ameaça, e não um devir.
Foi constrangedor ouvir uma figura ligada a uma tradição familiar caracterizada pelo culto à inteligência e pela participação política progressista proferir uma visão a um tempo tão retrógrada, desinformada e, ao mesmo tempo, tão contrária ao bem coletivo e favorável ao lucro privado. A ministra deu mostras de confundir troca de arquivos pela web com furto e, assim, chamou veladamente tais internautas de ladrões.
Causa enorme preocupação a constatação de que o órgão máximo de gestão da cultura brasileira está sob o comando de alguém tão despreparado. É ingenuidade, porém, a crença de que o problema do MinC seja de ordem individual e que uma simples troca de nomes resolveria a questão. Ana de Hollanda é uma peça da política federal de cultura do governo Dilma Rousseff, e qualquer mudança só será efetiva se a ideologia orientadora de tal política for alterada a favor de uma abordagem positiva da cultura digital, da retomada dos grandes projetos de inclusão cultural da gestão Gilberto Gil/Juca Ferreira, hoje claramente boicotados, e do fim da visão mercadista e atrasada de direitos autorais que colocou o suspeitosíssimo Ecad no centro da cena cultural brasileira - a qual ora se encontra muito aquém de suas imensas potencialidades, em larga medida devido ao estrabismo cultural do Estado.
A audiência de Ana na Câmara dá-se em um momento em que a insatisfação acumulada pela classe artística, por ativistas digitais e pelos produtores culturais encontra-se na iminência de transbordar. Circula um manifesto, que une tanto artistas de centro-esquerda quanto do campo oposicionista, pedindo a substituição de Ana por Danilo Miranda, diretor cultual do SESC. Os ativistas digitais, que foram ponta-de-lança durante as eleições, formam certamente o grupo mais insatisfeito: se sentem traídos, dada a disparidade entre os compromissos com a cultura digital assumidos em campanha - para a qual contribuíram intensamente - e a postura mercantilista e corporativa assumida pelo MinC.
Dilma parece dar, cada vez mais e a um número cada vez maior de pessoas, a impressão de que seu governo concentra-se sobretudo em um esforço gerencial, alegadamente “desideologizado”, da economia – e que tudo o mais – políticas de gênero, educação, cultura - é supérfluo. A classe artística é numericamente pequena, mas tende a ser politicamente mais volátil e a ter um grande poder de influência. A insistência no retrocesso das políticas culturais, do qual Ana de Hollanda tornou-se o símbolo, além dos graves danos à cultura, à cidadania e à segurança jurídica na internet que já vem causando, pode vir a cobrar um alto preço eleitoral no futuro.
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