domingo, 13 de novembro de 2011

UMA DO TCHAIKOVSKY

Retirado do blog do Jefh Cardoso em 13/11/2011 do endereço:

http://jefhcardoso.blogspot.com/2011/11/uma-do-tchaikovsky.html#comment-form 

Fazia alguns dias que ajudava o casal. Sempre se despedia prometendo voltar na manhã do dia seguinte. Um dia voltou e não foi atendido. Bateu no portão. Abriu o portão, enfiou a cabeça para dentro do quintal e chamou. Não foi atendido. O cachorro latia, mas não era para ele, o cachorro latia para o lado, como se visse algo se mover em meio a fumaça tóxica de uma fogueira que, pelo cheiro, deveria estar consumindo uns plásticos ou qualquer outra coisa não orgânica. O cachorro se quer o olhava. Era um pequeno vira latas atado a um arame que poderia percorrer em toda sua extensão de três metros, aproximadamente, eu creio. O cão não tinha o menor indício de ferocidade, e mesmo assim era mantido preso, o tempo inteiro. Talvez devesse a isso o fato do cão ser um tanto esquizofrênico.

O cão latia sem olhá-lo, ele chamava pela dona da casa, a fumaça tóxica impregnava os ares, ninguém atendia. Decidiu tentar chamar Dona Amélia ao telefone, tinha o número. O telefone chamava até o fim, e nada de atender. Abriu novamente o portão e pode ver que a porta da cozinha estava aberta. Talvez Dona Amélia tivesse deixado Seu Felipe sozinho por um instante e ido até a venda, ou à casa de alguma vizinha (algo que um cuidador mais zeloso condenaria veemente). Não havia o que fazer. Não queria invadir a casa. Dona Amélia bem poderia não querer atendê-lo naquele dia, mas poderia também ter enfartado sobre o dorso do marido moribundo enquanto trocava o frasco de dieta. Poderia também, por motivo desconhecido, ter antecipado o banho do pobre homem, contando para tal com a ajuda de algum vizinho para removê-lo do leito.

Eis o mistério. Onde estaria Dona Amélia que não atendia o portão naquela manhã, justo ela que sempre abria o portão sorridente ao primeiro chamado? Os mais histéricos teriam invadido a casa sob o pretexto de prestar socorro. Os mais moderados esperariam até algo mudar a cena, fosse o que fosse. Os mais eruditos buscariam a solução em uma citação literária. Os mais religiosos na bíblia. Nosso jovem herói, ajudante desempregado, decidiu ir até o insólito bar do Farias para comer uma coxinha e tomar uma brota-atola bem gelada. Foi. No caminho, ouvia no velho MP3 Tchaikovsky, A Valsa das Flores, de “O Quebra-Nozes”, eu creio. Comeu a coxinha, que mais justo seria ser chamada de coxona, e tomou o refrigerante bem gelado. Pensou um pouco na questão dos finados. É que, a caminho da casa do casal, passou diante do portão do cemitério principal da cidade e viu um grande monte de flores empilhadas. Ponderou que até as flores mortas do dia de finados atestavam que nada que é humano é perene, mas tudo é na verdade perecível e ilusório, “vaidade de vaidades, tudo é vaidade”, como dizia o pregador.

Transcorridos cerca de quarenta minutos, retornou à casa do casal. Bateu no portão com a chave da própria casa. Dona Amélia veio atender ao primeiro chamado, como de costume, sorridente e receptiva. Não explicou nada, sequer mencionou a alteração do horário, era uma criatura livre de formalidades. Ela estava com a casa parcialmente revirada. Era dia de faxina. Nosso herói não disse nada sobre a espera. Entrou, ajudou, como de costume, e partiu com um trocado no bolso.

Obs. Esta postagem é comemorativa do terceiro ano deste blog, a completar-se no dia 01.01.12, e também a adesão de mais de 3500 generosas pessoas que me apóiam. Será uma série de singelas postagens onde pretendo revelar peculiaridades dos dias comuns de um homem comum vivendo uma vida comum. Peço o seu voto para este blog no Top Blog 2011.

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