Retirado do Cultura e Mercado em 11/06/12 do endereço:
Por Claudia Taddei
O tema do financiamento à cultura anda bastante centrado em seus mecanismos, alterações, ajustes, pleitos e críticas.
Percebo dois pontos bastante relevantes que deveriam ser discutidos de maneira mais aprofundada neste debate. Um se refere ao conteúdo, ou melhor, o que deve ser financiado; e o outro se refere à forma ou à sua aplicabilidade.
Do conteúdo
O atual sistema, mesmo após a mudança, segue funcionando sob a lógica de projeto e resultado e ainda não dedicou a devida importância a um aspecto fundamental da arte e da cultura: o processo de criação.
Qualquer que seja a linguagem artística, ela prescinde de um tempo de criação, maturação. O mundo da arte e da cultura é preeminentemente um mundo da criatividade, porque o artista não está diretamente ligado às convenções, dogmas e instituições da sociedade. O artista tem uma expressão criativa que é resultado direto de sua liberdade.
O suporte ao processo de criação é fundamental não apenas para o desenvolvimento criativo individual do artista mas igualmente essencial para preservar a diversidade de bens simbólicos e valores artísticos brasileiros.
Como o artista afinal pode dedicar seu tempo à produção artística? Em sua grande maioria, os artistas sobrevivem dos produtos gerados. Mas como fazem durante todo o processo até que a obra se concretize? E se o processo fugir do planejado, em termos de tempo e recurso? Só o amplo apoio ao processo criativo oferece a liberdade necessária ao artista para criar e recriar e, claro, é capaz de preservar manifestações culturais, simbólicas e tradicionais que não funcionam sob a lógica de produto.
Sejamos sinceros. Salvo raras exceções, os artistas brasileiros passam todo o processo de criação ‘se virando’, dedicando seu tempo livre, quando deveriam dedicar o seu tempo ‘produtivo’ à criação. As companhias de teatro que não foram agraciadas com apoio a um projeto de pesquisa ou fomento ‘se viram’; os músicos que não são suportados por gravadoras ‘se viram’; os escritores que não são os preferidos das editoras ‘se viram’ e assim por diante.
Há quase 10 anos, quando debutava na área cultural com a minha pequena empresa, tive a oportunidade de colaborar com alguns músicos instrumentistas – diga-se de passagem extremamente qualificados e talentosos. Eles procuravam meu apoio para viabilizar uma residência artística. Tinham acabado de voltar da França – Bretanha onde tinham passado alguns meses numa residência artística – paga, claro -, realizando ensaios, trocas, criações musicais conjuntas com um grupo francês da região. Essa iniciativa havia sido financiada por uma das várias instituições francesas que suportam o artista e não seus produtos.
Fiquei maravilhada com a experiência e me dediquei a procurar meios de realizar o mesmo tipo de residência aqui no Brasil. O resultado foi absolutamente decepcionante. As possibilidades de realizar algo assim eram ‘marginais’, ou seja, raras exceções dentro de um outro espaço, mas nada que se dedicasse e objetivasse realizar e viabilizar uma residência. Não muito distante é a procura de quem detêm acervos de arte e luta para preservá-lo, mantê-lo e difundi-lo. Salvo dois ou três editais saturadíssimos de demandas, não se pode contar com mais nenhum outro mecanismo de financiamento.
Não devemos, no entanto, demonizar os produtos ou eventos culturais. Estes representam o momento de compartilhamento, quando o artista pode estimular o interesse de consciência dos espectadores. É aí que se intensifica a relação e o diálogo com o público que retroalimenta o trabalho do artista.
O que se deseja é pensar, fazer e criar arte e cultura de maneira integral, entendendo processo e resultado como funções igualmente importantes.
Imagino assim que todos aqueles milhares de artistas e criadores que ‘se viram’ esperam que o Procultura, especialmente através do Fundo Nacional de Cultura, comece a entender e suportar o artista – e não apenas sua produção - através de projetos de criação de repertório, residências artísticas, preservação de acervos, entre outros.
Outras ações de política pública ainda deveriam ser implantadas para ampliar o apoio aos artistas e as manifestações culturais, dentre as quais destaco a criação e fortalecimento de instituições que se dediquem a apoiar os artistas, as culturas tradicionais e demais bens simbólicos nacionais, sejam materiais ou imateriais.
Da forma
O novo sistema de financiamento há ainda que se dedicar à forma como os recursos são investidos. Gostaria de me debruçar sobre um dos aspectos da aplicabilidade e eficiência do financiamento à cultura, que diz respeito ao uso dos recursos na esfera local. Como dizem os ambientalistas: ‘Pense globalmente e aja localmente’.
Reforço que este é um dos aspectos da aplicabilidade e eficiência do financiamento, nem todos os projetos podem ser pensados sob este prisma, mas uma grande maioria sim.
Discute-se muito o fato da Lei Rouanet concentrar projetos nos locais onde há maior concentração de renda e maior volume de empresas investidoras, mas a grande parte dos municípios brasileiros, estejam eles ou não à margem dos pólos de riqueza, pouco aproveitam o atual mecanismo de financiamento para realizar, apoiar ou receber ações culturais relevantes.
Os mecanismos de financiamento atualmente tratam de viabilizar, através da figura do proponente, projetos culturais, ponto final. É preciso haver um pensamento sistêmico na aplicação dos recursos para a cultura, que enxergue além do proponente e do investidor, e compreenda a realidade e as necessidades culturais locais do ponto de vista de: governança, equipamentos culturais, agentes, artistas, públicos e valores identitários locais.
Realizar projetos de forma isolada pode levar a um grande desperdício de esforço e de recurso, pois nada garante a sua eficiência quanto ao aproveitamento do público final, sua real relevância local, seu valor residual no que diz respeito à criação artística ou à valorização de bens simbólicos.
Tento ilustrar o que quero dizer com ‘agir localmente’. Nos últimos anos tive a oportunidade de realizar projetos de modo recorrente em pequenas cidades do interior de São Paulo. Sempre fui tomada por uma preocupação de conhecer a cena cultural local, tentar estabelecer parcerias, atuar de forma colaborativa, enxergar as carências e demandas da população, as manifestações e grupos culturais locais, etc. Eis que me dei conta de que as manifestações e artistas locais careciam não apenas de apoio financeiro do governo local, mas antes de mais nada de reconhecimento.
Não é incomum saber que as prefeituras apoiam – inclusive e sobretudo financeiramente – eventos como o Carnaval ou as Festas de Peão, e não como manifestação local, mas apenas como eventos massificados que reúnem muitas pessoas e deixam, por outro lado a sua música de raiz simplesmente desaparecer. Estamos falando de um grande número de municípios que, ou não possuem sequer um departamento de cultura, ou ainda pior, este se confunde com turismo. Tampouco é incomum que muitos dos projetos culturais não sejam realizados nem por proponentes, nem por colaboradores locais. Menos ainda, incorporam manifestações e artistas locais. Qual análise se pode fazer do impacto social e cultural deixado por tais iniciativas?
Os projetos precisam apresentar uma situação de mão dupla quanto ao impacto sociocultural local: de um lado exigindo contrapartida e participação local e de outro incorporando instrumentos capazes de pensar os possíveis impactos gerados visando claro, não apenas minimizar os impactos negativos, mas ampliar os impactos e efeitos positivos.
O financiamento à cultura só encontrará um caminho sustentável se incorporar a preocupação de deixar legados, educar e formar gestores locais, incentivar a iniciativa pública e privada local a pensar, reconhecer e valorizar sua cultura e disseminar a arte.
Claudia Taddei
Formada em Relações Internacionais pela PUC-SP, é especializada em marketing cultural e gestão para Terceiro Setor. Fundadora da COM TATO, desde 2001 atua como gestora de projetos culturais. Para mais artigos deste autor clique aqui
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