Publicado originalmente no Sul21 e retirado em 12/03/2011 do endereço:
Comunicação Social/MinC
Felipe Prestes
A ministra da Cultura, Ana de Hollanda, chegou à Esplanada com os jornais noticiando que era a “irmã do Chico”. Mesmo militantes da área da cultura que apoiam o governo pouco conheciam suas ideias sobre o tema antes que ela assumisse. E com pouco mais que dois meses de Governo Dilma, parece que a maioria deles não gostou nada dos primeiros passos de Ana no cargo. As reclamações contra ela se propagam rapidamente na internet e na imprensa. O motivo é que a ministra teria se tornado um obstáculo ao projeto de reforma da Lei de Direitos Autorais (LDA), que fora discutido durante os últimos quatro anos do Governo Lula.
Por meio do Fórum Nacional do Direito Autoral que, entre 2007 e 2010, realizou mais de 80 encontros com a presença de cerca de dez mil pessoas, o MinC elaborou uma proposta de reforma que estava em fase de consulta pública pela internet. A proposta elaborada quando Juca Ferreira era ministro da Cultura prevê, dentre vários pontos, uma flexibilização do direito autoral para o uso privado. Foi o que gerou a celeuma.
As evidências de que Ana de Hollanda se opõe a esta flexibilização foram se acumulando durante este início de gestão. Primeiro, Ana de Hollanda mandou retirar o selo da licença Creative Commons do site do Ministério da Cultura (MinC). Depois, em uma ação mais concreta, destituiu do cargo de diretor de Direitos Intelectuais do MinC Marcos Alves de Souza, que tinha capitaneado todo o debate público ocorrido durante o Governo Lula. Para seu lugar, Ana nomeou Marcia Regina Barbosa, a quem os descontentes acusam de defender os interesses do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), órgão privado responsável por cobrar os direitos autorais de compositores a emissoras de rádio e televisão, bares, casas noturnas, entre outros locais de reprodução pública de músicas.
Mais debate
Ana de Hollanda diz que "ninguém conhece" proposta elaborada pela gestão anterior (Foto: Divulgação)
No último domingo (6), a ministra Ana de Hollanda declarou à Agência Brasil que caberá a Márcia revisar a proposta, que teria sido pouco discutida. Ana caiu em contradição ao dizer que “ninguém conhece” esta proposta e, ao mesmo tempo, declarar que a categoria musical “não se via contemplada” com o anteprojeto.
Ativista de causas como os softwares livres, Marcelo Branco foi coordenador da campanha de Dilma Rousseff à presidência nas redes sociais. Ele discorda de que tenha havido pouco debate sobre a reforma da LDA. “Não é verdade, o projeto não era desconhecido. É óbvio que houve várias pessoas – dentre elas a ministra Ana de Hollanda pelo que se vê – que não prestaram atenção ou não acharam que era importante se envolver no debate público”, diz.
Branco, contudo, considera positivo que se discuta ainda mais a proposta. “Estamos prontos para o debate. Acho que temos que aceitar o desafio. Não estamos querendo cercear a discussão”.
Internautas x compositores?
Caso aprovada como lei, a proposta autorizaria algumas pequenas mudanças na legislação sobre direito autoral, tirando da ilegalidade práticas amplamente difundidas na sociedade, como a cópia de arquivos de mídia para backup, ou para torná-los perceptíveis em outro formato de equipamento (por exemplo: passar um arquivo de um CD para um MP3 player). O ponto mais polêmico seria a proibição de que CDs ou DVDs sejam fabricados com medidas tecnológicas de proteção a estes tipos de cópia.
Foi o suficiente para que a discussão sobre a Lei de Direitos Autorais fosse divulgada como uma mera briga entre internautas sedentos por música grátis e incentivadores da pirataria contra compositores. A própria ministra Ana de Hollanda engrossou esse coro, ao declarar à revista Carta Capital que “parece que há uma campanha para satanizar o autor”.
Mas o projeto vai muito além desta polêmica e traz, inclusive, pontos que protegem o autor, seja ele de música ou de outras áreas. Pontos que devem causar urtigas às multinacionais da indústria cultural e às grandes empresas nacionais deste segmento. A proposta prevê a revisão ou anulação de contratos injustos, algo que muitas vezes ocorre na relação entre artistas e grandes empresas. O projeto também proíbe a cessão definitiva de direitos sobre obras a editoras.
Além disso, a reforma da LDA contemplaria classes hoje esquecidas da partilha dos direitos, como orquestradores, arranjadores, na música e diretores, roteiristas e compositores de trilha sonora original, em obras audiovisuais. Um ponto que desagrada especialmente aos meios de comunicação é a possibilidade de uma condição para a renovação de concessões para rádio e televisão seja a adimplência com o pagamento de direitos autorais.
Críticas ao ECAD
A proteção a artistas também estaria colocada pela criação de um órgão público para resolução de conflitos entre o ECAD e os artistas, e também entre ECAD e as empresas que sofrem cobranças do escritório. Hoje, são inúmeras as queixas contra o ECAD. Músicos reclamam sobre falta de transparência nas remunerações. Bares e casas noturnas reclamam de cobranças abusivas.
Há ainda contestações sobre o modelo de arrecadação. O ECAD é uma entidade privada, formada por dez associações de músicos. O escritório não só detém o monopólio das cobranças, como cobra direitos sobre músicas até mesmo compostas por autores não filiados a estas associações, que nunca receberão este dinheiro. Algumas aberrações no modus operandi da entidade são relatadas por muitos músicos. O escritório costuma cobrar, por exemplo, de artistas que tocaram apenas canções de sua autoria em um show. Ou seja, o artista é cobrado por tocar suas próprias músicas.
“Não existe uma dicotomia entre músicos e defensores da internet”, afirma o jornalista, escritor e editor de livros Renato Rovai, que apoiou a candidatura de Dilma Rousseff. Segundo ele, a ministra defende uma “pequena elite” de artistas que lucra com o sistema atual de cobrança de direitos autorais. “Estes órgãos como o ECAD são questionados pelos artistas há muitos anos”.
Marcelo Branco afirma que há uma “jogada” de quem é contra a reforma da LDA para colocar os artistas contra a reforma. “A ideia (da reforma) é justamente valorizar o autor, que ele possa voltar a ser dono de sua obra. Hoje, na lógica da era industrial, o autor tem que abrir mão de seus direitos em prol da editora ou de gravadora”. Ele também faz coro às críticas ao ECAD. “Tem que ser fiscalizado, em primeiro lugar. E, segundo, ele tem que deixar de ser um monopólio. Se um grupo de artistas resolver ter outra associação arrecadadora eles devem ter o direito de fazer isso. Por que é que o artista já nasce com o ECAD à tiracolo?”
Quanto à questão das cópias de arquivos, Branco diz que há uma “confusão” entre o uso privado e a pirataria. “A prática de cópia privada deve ser reconhecida como direito, e não como um delito como é pela atual legislação”. O ativista também argumenta que é impossível fiscalizar a cópia privada sem interferir na privacidade do cidadão. O Sul21 procurou a assessoria de imprensa do ECAD, mas não obteve qualquer resposta.
Nei Lisboa assina carta que defende direito autoral, mas pede reformulações no ECAD (Foto: Divulgação)
Terceira via
Provando que, de fato, não há uma dicotomia entre defensores da reforma na LDA e compositores, foi divulgada nesta semana uma carta assinada por quase uma centena de músicos, em que eles se colocam como “terceira via”. A carta “Terceira Via para o Direito Autoral” é assinada por artistas de peso como Charles Gavin, Ivan Lins, Jair Rodrigues, Kleiton Ramil, Ná Ozzetti, Pepeu Gomes e Roberto Frejat.
Por um lado, os músicos reafirmam a defesa de seus direitos sobre as canções que compõem, “inclusive no ambiente digital”. O grupo considera “urgente” a criação de mecanismos para a arrecadação do direito autoral pelo uso de músicas na rede mundial de computadores. Por outro lado, ressaltam que são contra a criminalização do usuário e defendem com veemência a parte da proposta do governo que diz respeito à fiscalização do ECAD.
A opinião do compositor Nei Lisboa, que assinou a carta, reflete bem a ideia de terceira via. “Achei importante a carta porque o debate vinha sendo polarizado, traduzido em manchetes, como uma briga entre quem queria acabar com o ECAD e os que estavam a defender o direito do autor”, diz o músico.
Nei acredita que os músicos colocam-se como terceira via justamente por reforçar os direitos autorais, ao mesmo tempo em que pregam mudanças no ECAD. “Havia no ar esse perigo de que se liberasse na rede, que o direito autoral deixasse de existir, certa propagação desta ideia. O que o texto faz é reafirmar que o autor tem direito sobre sua obra. Também se faz a ressalva da ideia de se ter um órgão de fiscalização do sistema de arrecadação no Brasil. Por isso é que estamos nos colocando como terceira via”.
Nei Lisboa acredita que a carta pode “restaurar a calma”. Por um lado, Nei afirma que a intenção declarada do governo é de proteger o autor e que, portanto, basta que esta proteção se traduza no projeto que for, de fato, encaminhado ao Congresso. “A intenção declarada do governo é não prejudicar o direito do autor. Então, basta que isso seja traduzido para o projeto nos termos em que tem que ser”.
De outro lado, Nei afirma que a calma também deve ser instaurada no sentido de tranquilizar a grita dos que são contra qualquer mudança no modus operandi da arrecadação dos direitos. “Antes o ECAD era a Geni, todos os músicos apedrejavam ele. Hoje, quando se propõe ter um órgão de supervisão, começam a gritar contra a intervenção do estado. Ninguém está querendo estatizar o ECAD, nem acabar com ele. Mas um sistema tão gigante, que envolve milhões de autores, é uma área em que o estado tem que ter poder de supervisão, fiscalização. O autor tem que ter uma instância a que ele possa recorrer. É importante que a gente possa discutir isto publicamente”.
Sobre os direitos autorais, Nei Lisboa acredita que não pode ser retirada de cada compositor a prerrogativa de decidir se quer ter suas obras compartilhadas, copiadas, etc. apesar de ele mesmo gostar de difundir suas músicas de graça pela rede. “O estado não pode legislar em nome do autor, liberando obra para lá e para cá. Acho que caberia ao autor autorizar isto, antes de mais nada. Eu sou um grande partidário da troca de MP3. Agora, isto se refere à minha obra. Outro autor pode discordar”.
Ampliação do acesso
Para os cidadãos, a proposta de reforma da LDA prevê várias mudanças que apontam para a ampliação do acesso ao conhecimento, mas que também podem se chocar com o interesse dos autores. Caso a lei for aprovada como está, a comunicação de textos literários, teatrais, musicais e audiovisuais será permitida em qualquer espaço, desde que feita de forma gratuita ao cidadão. A difusão de filmes por cineclubes de forma gratuita também fica permitida sem autorização prévia de quem detiver os direitos. A reprodução de músicas, livros ou filmes que estão com a última edição esgotada também será permitida.
Para a cópia de livros ou parte de livros, prática amplamente difundida no meio acadêmico, a reforma da LDA busca uma solução pacífica entre editoras e comunidade acadêmica. A legislação incentivará que as editoras licenciem suas obras em serviços de copiadoras, mediante compensação financeira a autor e editora. O projeto também regulamenta que o direito de distribuição sobre um livro termina com a primeira venda, legalizando assim a atuação dos sebos e de bibliotecas, que, atualmente, precisam de autorização dos donos dos direitos para revender ou emprestar livros.
Marcelo Branco: "Podemos ter uma das legislações mais modernas no que diz respeito ao direito autoral" (Foto: Divulgação)
Um ponto interessante tanto a músicos quanto ao cidadão é o da punição ao “jabá” (prática de pagar para que emissoras de rádio e televisão executem determinada música). Com esta prática, músicos sofrem concorrência desleal, porque quem paga acaba ganhando bem mais, logo adiante. E os cidadãos ficam cerceados em seu direito de ouvir canções selecionadas por critérios justos.
A reforma da LDA também busca acabar com a insegurança jurídica sobre a validade do direito autoral. Hoje, a legislação não explicita claramente se os 70 anos até a obra cair em domínio público contam a partir da morte do autor, ou da publicação da obra. A proposta fixa 70 anos a partir da criação da obra, visando não tornar o direito autoral uma herança quase perpétua.
“O Brasil pode ter uma das legislações mais modernas no que diz respeito ao direito autoral. Tem que se chegar a um consenso que contemple o ponto de vista do autor e dos usuários, os adversários deste projeto são as grandes gravadoras multinacionais, a indústria cinematográfica”, diz Marcelo Branco.
Posição do governo
“O programa de Dilma para a cultura não era este (defendido por Ana de Hollanda)”, diz Renato Rovai. O jornalista acredita que a ministra pode, inclusive, acabar sendo substituída na primeira reforma ministerial que Dilma Rousseff promover.
Marcelo Branco lembra que a própria Dilma Rousseff já se manifestou favorável à reforma da LDA (ver vídeo abaixo), quando ainda era ministra-chefe da Casa Civil, na Campus Party, uma espécie de festival da informática, ocorrida em janeiro de 2010. “A política da Ana de Hollanda entra em conflito com o que defendia o governo Lula”, diz.
Branco ressalta que o Brasil vem defendendo em âmbito internacional, desde 2003, a flexibilização da propriedade intelectual. Essa posição foi defendida pelo país em duas rodadas da Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, em 2003 e 2005. O coordenador da campanha de Dilma para as redes sociais afirma que a discussão sobre o direito autoral não está isolada, por exemplo, da discussão sobre patentes de medicamentos. “Isso está no bojo de toda a discussão sobre a flexibilização das patentes de medicamentos. Não é uma discussão isolada. Por isso, não acredito que o governo brasileiro recue, mesmo que as iniciativas do MinC apontem, neste momento, para um retrocesso”.
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