segunda-feira, 7 de março de 2011

FOI UM RIO QUE PASSOU EM PATAVINA’S

Publicado originalmente no PATAVINA'S e retirado em 07/03/2011 do endereço:

http://cesarcar.blogspot.com/2011/03/esta-e-uma-pequena-e-bastante.html#comments

Esta é uma pequena e bastante incompleta antologia carnavalesca de nossa literatura. E traz também trabalhos de dois grandes chargistas: Nani e Zé da Silva. Num espaço de tempo de cerca de cem anos, temos aqui um pouco do olhar de nossas elites pensantes sobre nossa maior festa popular. Talvez as elites não sejam tão pensantes assim e talvez a festa também não seja tão popular. Mas certamente temos aqui muitos exemplos de boa literatura. Divirtam-se!
E meus agradecimentos especiais ao Nani e ao Zé da Silva, pelas charges.
Cesar Cardoso (cesarcar@uninet.com.br)
ENTRUDO E MASCARAS

Extracto do regulamento de 2 de fevereiro de 1858

He expressamente prohibido o jogo de entrudo com água, limas de cheiro, lama, fructas podres e outro qualquer objecto.
Os mascaras não podem usar de caracter alusivo à religião ou pessoas designadas.
Os escravos não podem usar de mascaras.
As armas dos mascaras serão de papelão ou madeira frágil.
Os mascaras por occasião do carnaval só podem transitar pelas ruas até as 8 horas da noite.
Não se permitte fazer perguntas ou travar conversações com o s mascaras, que não sejam decentes: assim como o procurar descobrir o segredo dos mascaras.
Serão punidos os mascaras que praticarem actos indecentes ou provocarem rixas.
(Em “A Folhinha de Almanak ou Diario Ecclesiastico e Civil para as Províncias de Pernambuco, Parahyba, Rio Grande do Norte, Ceará e Alagoas”, 1858.)

DUAS CRÔNICAS DE MACHADO DE ASSIS

[12 fevereiro] de 1893
FALECI ONTEM, pelas sete horas da manhã. Já se entende que foi sonho; mas tão perfeita a sensação da morte, a despegar-me da vida tão ao vivo o caminho do céu, que posso dizer haver tido um antegosto da bem-aventurança.
Ia subindo, ouvia já os coros de anjos, quando a própria figura do Senhor me apareceu em pleno infinito. Tinha uma ânfora nas mãos, onde espremera algumas dúzias de nuvens grossas, e inclinava-a sobre esta cidade, sem esperar procissões que lhe pedissem chuva. A sabedoria divina mostrava conhecer bem o que convinha ao Rio de Janeiro; ela dizia enquanto ia entornando a ânfora:
— Esta gente vai sair três dias à rua com o furor que traz toda a restauração. Convidada a divertir-se no inverno, preferiu o verão não por ser melhor, mas por ser a própria quadra antiga, a do costume, a do calendário, a da tradição, a de Roma, a de Veneza, a de Paris. Com temperatura alta, podem vir transtornos de saúde, — algum aparecimento de febre, que os seus vizinhos chamem logo amarela, não lhe podendo chamar pior... Sim, chovamos sobre o Rio de Janeiro.
Alegrei-me com isto, posto já não pertencesse à terra. Os meus patrícios iam ter um bom carnaval, — velha festa, que está a fazer quarenta anos, se já os não fez. Nasceu um pouco por decreto, para dar cabo do entrudo, costume velho, datado da colônia e vindo da metrópole. Não pensem os rapazes de vinte e dous anos que o entrudo era alguma cousa semelhante às tentativas de ressurreição, empreendidas com bisnagas. Eram tinas d'água, postas na rua ou nos corredores, dentro das quais metiam à força um cidadão todo, — chapéu, dignidade e botas. Eram seringas de lata; eram limões de cera. Davam-se batalhas porfiadas de casa a casa, entre a rua e as janelas, não contando as bacias d'água despejadas a traição. Mais de uma tuberculose caminhou em três dias o espaço de três meses.
Quando menos, nasciam as constipações e bronquites, ronquidões e tosses, e era a vez dos boticários, porque, naqueles tempos infantes e rudes, os farmacêuticos ainda eram boticários.
Cheguei a lembrar-me, apesar de ir caminho do céu, dos episódios de amor que vinham com o entrudo. O limão de cera, que de longe podia escalavrar um olho, tinha um ofício mais próximo e inteiramente secreto. Servia a molhar o peito das moças; era esmigalhado nele pela mão do próprio namorado, maciamente, amorosamente, interminavelmente . . .
Um dia veio, não Malesherbes, mas o carnaval, e deu à arte da loucura uma nova feição. A alta roda acudiu de pronto; organizaram-se sociedades, cujos nomes e gestos ainda esta semana foram lembrados por um colaborador da Gazeta. Toda a fina flor da capital entrou na dança. Os personagens históricos e os vestuários pitorescos, um doge, um mosqueteiro, Carlos V, tudo ressurgia às mãos dos alfaiates, diante de figurinos, à força de dinheiro. Pegou o custo das sociedades, as que morriam eram substituídas, com vária sorte, mas igual animação.
Naturalmente, o sufrágio universal, que penetra em todas as instituições deste século, alargou as proporções do carnaval, e as sociedades multiplicaram-se, com os homens. O gosto carnavalesco invadiu todos os espíritos, todos os bolsos, todas as ruas. Evohé! Bacchus est roi! dizia um coro de não sei que peça do Alcazar Lírico, — outra instituição velha, mas velha e morta. Ficou o coro, com esta simples emenda:
Evohé! Momus est roi!
Não obstante as festas da terra, ia eu subindo. subindo, até que cheguei à porta do céu, onde S. Pedro parecia, aguardar-me, cheio de riso.
— Guardaste para ti tesouros no céu ou na terra? perguntou-me.
Se crer em tesouros escondidos na terra é o mesmo que escondê-los, confesso o meu pecado, porque acredito nos que estão no morro do Castelo, como nos cento e cinqüenta contos fortes do homem que está preso em Valhadolide. São fortes; segundo o meu criado José Rodrigues, quer dizer que são trezentos contos. Creio neles. Em vida fui amigo de dinheiro, mas havia de trazer mistério. As grandes riquezas deixadas no Castelo pelos jesuítas foram uma das minhas crenças da meninice e da mocidade; morri com ela, e agora mesmo ainda a tenho. Perdi saúde, ilusões, amigos e até dinheiro, mas a crença nos tesouros do Castelo não a perdi. Imaginei a chegada da ordem que expulsava os jesuítas. Os padres do colégio não tinham tempo nem me os de levar as riquezas consigo; depressa, depressa, ao subterrâneo, venham os ricos cálices de prata, os cofres de brilhantes, safiras, corais, as dobras e os dobrões, os vastos sacos cheios de moeda, cem, duzentos, quinhentos sacos. Puxa, puxa este Santo Inácio de ouro maciço, com olhos de brilhantes, dentes de pérolas, toca a esconder, a guardar, a fechar...
— Pára, interrompeu-me S. Paulo; falas como se estivesses a representar alguma cousa. A imaginação dos homens é perversa. Os homens sonham facilmente com dinheiro. Os tesouros que valem são os que se guardam no céu, onde a ferrugem os não come.
— Não era o dinheiro que me fascinava em vida, era o mistério. Eram os trinta ou quarenta milhões de cruzados escondidos, há mais de século, no Castelo; são os trezentos contos do preso de Valhadolide. O mistério, sempre o mistério.
— Sim, vejo que amas o mistério. Explicar-me-ás este de um grande número de almas que foram daqui para o Brasil e tornaram sem se poderem incorporar?
— Quando, divino apóstolo?
— Ainda agora.
— Há de ser obra de um médico italiano, um doutor ... esperai... creio que Abel, um doutor Abel, sim Abel... É um facultativo ilustre. Descobriu um processo para esterilizar as mulheres. Correram muitas, dizem; afirma-se que nenhuma pode já conceber; estão prontas.
— As pobres almas voltavam tristes e desconsoladas; não sabiam a que atribuir essa repulsa. Qual é o fim do processo esterilizador? — Político. Diminuir a população brasileira, à proporção que a italiana vai entrando; idéia de Crispi, aceita por Giolitti, confiada a Abel ...
— Crispi foi sempre tenebroso.
— Não digo que não; mas, em suma, há um fim político, e os fins políticos são sempre elevados ... Panamá, que não tinha fim político ...
— Adeus, tu és muito falador. O céu é dos grandes silêncios contemplativos.
* * * * * *
[4 fevereiro] de 1894
QUANDO EU Li que este ano não pode haver carnaval na rua, fiquei mortalmente triste. É crença minha, que no dia em que deus Momo for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba. Rir não é só le propre de 1'homme, é ainda uma necessidade dele. E só há riso, e grande riso, quando é público, universal, inextinguível, à maneira de deuses de Homero, ao ver o pobre coxo Vulcano.
Não veremos Vulcano estes dias, cambaio ou não, não ouviremos chocalhos, nem guizos, nem vozes tortas e finas. Não sairão as sociedades, com os seus carros cobertos de flores e mulheres, e as roupas de veludo e cetim. A única veste que poderá aparecer, é cinta espanhola, ou não sei de que raça, que dispensa agora os coletes e dá mais graça ao corpo. Esta moda quer-me parecer que pega; por ora, não há muitos que a tragam. Quatrocentas pessoas? Quinhentas? Mas toda religião começa por um pequeno número de fiéis. O primeiro homem que vestiu um simples colar de miçangas, não viu logo todos os homens com o mesmo traje; mas pouco a pouco a moda pegando, até que vieram atrás das miçangas, conchas, pedras e outras. Daí até o capote, e as atuais mangas de presunto, em que as senhoras metem os braços, que caminho! O chapéu baixo, feltro ou palha, era há 25 anos uma minoria ínfima. Há uma chapelaria nesta cidade que se inaugurou com chapéus altos em toda a parte, nas portas, vidraças, balcões, cabides, dentro das caixas, tudo chapéus altos. Anos depois, passando por ela, não vi mais um só daquela espécie; eram muitos e baixos, de vária matéria e formas variadíssimas.
Não admira que acabemos todos de cinta de seda. Quem sabe não é uma reminiscência da tanga do homem primitivo? Quem sabe se não vamos remontar os tempos até ao colar de miçangas? Talvez a perfeição esteja aí. Montaigne é de parecer que não fazemos mais que repisar as mesmas cousas e andar no mesmo círculo; e oEclesiastes diz claramente que o que é, foi, e o que foi, é o que há vir. Com autoridades de tal porte, podemos crer que acabarão algum dia alfaiates e costureiras. Um colar apenas, matéria simples, na mais; quando muito, nos bailes, um simulacro de gibuspara pede com graça uma quadrilha ou uma polca. Oh! a polca das miçanga. Há de haver uma com esse título, porque a polca é eterna, e quando não houver mais nada, nem sol, nem lua, e tudo tornar às trevas, últimos deus ecos da catástrofe derradeira usarão ainda, no fundo do infinito, esta polca, oferecida ao Criador:
Derruba, meu Deus, derruba!
Como se disfarçarão os homens pelo carnaval quando voltar a idade da miçanga? Naturalmente com os trajes de hoje. A Gazeta de Notícias escreverá por esse tempo um artigo, em que dirá:
Pelas figuras que têm aparecido nas ruas, terão visto os nossos leitores Onde foi, séculos atrás, já não diremos o mau gosto, que é evidente, mas a violação da natureza, no modo de vestir dos homens. Quando possuíam as melhores casacas e calças, que são a própria epiderme, tão justa ao corpo, tão sincera, inventaram umas vestiduras perversas, falsas. Tudo é obra do orgulho humano, que pensa aperfeiçoar a natureza, quando infringe as suas leis mais elementares. Vede o lenço; o homem de outrora achou que ele tinha uma ponta de mais, e fez um tecido de quatro pontas, sem músculos, sem nervos, sem sangue, absolutamente imprestável, desde que não esteja a da pessoa. Há no nosso museu nacional um exemplar dessa ridicularia. Hoje, para dar uma idéia viva da diferença das duas civilizações, publicam um desenho comparativo, dous homens, um moderno, outro dos fins do século XIX; é obra de um jovem por um dos redatores desta folha, o nosso excelente companheiro João, amigo de todos os tempos.
Que não possa eu ler esse artigo, ver as figuras, compará-las, e repetir os ditos do Eclesiastes e de Montaigne, e anunciar aos povos desse tempo que a civilização mudará outra vez de camisa! Irei antes, muito antes, para aquela outra Petrópolis, capital da vida eterna. Lá ao menos há fresco, não se morre de insolação, nome que já entrou no nosso obituário, segundo me disseram esta semana. Não se pode imaginar a minha desilusão. Eu cria que, apesar de termos um sol de rachar, não morreríamos nunca de semelhante cousa. Há anos deram-se aqui alguns casos de não sei que moléstia fulminante, que disseram ser isso; mas vão lá provar que sim ou que não. Para se não provar nada, é que o mal fulmina. Assim, nem tudo acaba em cajuada, como eu supunha; também se morre de insolação. Morreu um, morrerão ainda outros. A chuva destes dias não fez mais que açular a canícula.
De resto, a morte escreveu esta semana em suas tabelas, algumas das melhores datas, levando consigo um Dantas, um José Silva, um Coelho Bastos. Não se conclui que ela tem mais amor aos que sobrenadam, do que aos que se afundam; a sua democracia não distingue. Mas há certo gosto particular em dizer aos primeiros, que nas suas águas tudo se funde e confunde, e que não há serviços à pátria ou à humanidade, que impeçam de ir para onde vão os inúteis ou ainda os maus. Vingue-se a vida guardando a memória dos que o merecem, e na proporção de cada um, distintos com distintos, ilustres com ilustres.
Essa há de ser a moda que não acaba. Ou caminhemos para a perfeição deliciosa e terna, ou não façamos mais que ruminar, perpétuo camelo, o mesmo jantar de todas as idades, a moda de morrer é a mesma ... Mas isto é lúgubre, e a primeira das condições do meu ofício é deitar fora as melancolias, mormente em dia de carnaval. Tornemos ao carnaval, e liguemos assim o princípio e o fim da crônica. A razão de o não termos este ano, é justa; seria até melhor que a proibição não fosse precisa, e viesse do próprio ânimo dos foliões. Mas não se pode pensar em tudo.
Machado de Assis, crônicas publicadas em A semana. Machado de Assis, Obra Completa, vol. III. Editora Nova Aguilar.

CORDÕES
JOÃO DO RIO
Oh! Abre ala!
Que eu quero passá
Estrela d’Alva
Do Carnavá!
Era em plena Rua do Ouvidor. Não se podia andar. A multidão apertava-se, sufocada. Havia sujeitos congestos, forçando a passagem com os cotovelos, mulheres afogueadas, crianças a gritar, tipos que berravam pilhérias. A pletora da alegria punha desvarios em todas as faces. Era provável que do largo de São Francisco à rua Direita, dançassem vinte cordões e quarenta grupos, rufassem duzentos tambores, zabumbassem cem bombos, gritassem cinquenta mil pessoas. A rua convulsionava-se como se fosse fender, rebentar de luxúria e de barulho. A atmosfera pesava como chumbo. No alto, arcos de gás besuntavam de uma luz de açafrão as fachadas dos prédios. Nos estabelecimentos comerciais, nas redações dos jornais, as lâmpadas elétricas despejavam sobre a multidão uma luz ácida, e galvânica, que enlividescia e parecia convulsionar os movimentos da turba, sob o panejamento multicolor das bandeiras que adejavam sob o esfarelar constante dos confetti, que, como um irisamento do ar, caíam, voavam, rodopiavam. Essa iluminação violenta era ainda aquecida pelos braços de luzauer, pelas vermelhidões de incêndio e as súbitas explosões azuis e verdes dos fogos de Bengala; era como que arrepiada pela corrida diabólica e incessante dos archotes e das pequenas lâmpadas portáteis. Serpentinas riscavam o ar; homens passavam empapados d’água, cheios de confetti; mulheres de chapéu de papel curvavam as nucas à etila dos lança-perfumes, frases rugiam cabeludas, entre gargalhadas, risos, berros, uivos, guinchos. Um cheiro estranho, misto de perfume barato, fartum, poeira, álcool, aquecia ainda mais o baixo instinto de promiscuidade. A rua personalizava-se, tornava-se uma e parecia, toda ela policromada de serpentinas e confetti, arlequinar o pincho da loucura e do deboche. Nós íamos indo, eu e o meu amigo, nesse pandemônio. Atrás de nós, sem colarinho, de pijama, bufando, um grupo de rapazes acadêmicos, futuros diplomatas e futuras glórias nacionais, berrava furioso a cantiga do dia, essas cantigas que só aparecem no Carnaval:
Há duas coisa
Que me faz chorá
É nó nas tripa
E bataião navá!
[...]
Abriguei-me a uma porta. Sob a chuva de confetti, o meu companheiro esforçava-se por alcançar-me.
- Por que foges?
- Oh! Estes cordões! Odeio o cordão.
- Não é possível.
- Sério!
Ele parou, sorriu:
- Mas o que pensas tu? O cordão é o Carnaval, o cordão é vida delirante, o cordão é o último elo das religiões pagãs. Cada um desses pretos ululantes tem, por sob a belbutina e o reflexo discrômico das lantejoulas, tradições milenares; cada preta bêbada, desconjuntando nas tartalanas amarfanhadas os quadris largos, recorda o delírio das procissões em Biblos pela época da primavera e a fúria rábida das bacantes. Eu tenho vontade, quando os vejo passar zabumbando, chocalhando, berrando, arrastando a apoteose incomensurável do Rumor, de os respeitar, entoando em seu louvor a “prosódia” clássica com as frases de Píndaro: salve grupos floridos, ramos floridos da vida...
Parei a uma porta, estendo as mãos.
- É a loucura, não tem dúvida, é a loucura. Pois é possível louvar o agente embrutecedor das cefalalgias e do horror?
- Eu adoro o horror. É a única feição verdadeira da Humanidade. E por isso adoro os cordões, a vida paroxismada, todos os sentimentos tendidos, todas as cóleras a rebentar, todas as ternuras ávidas de torturas... Achas tu que haveria carnaval se não houvesse os cordões? Achas tu que bastariam os préstitos idiotas de meia dúzia de senhores que se julgam engraçadíssimos ou esse pesadelo dos três dias gordos intitulado máscaras de espírito? Mas o Carnaval teria desaparecido, seria hoje menos que a festa da Glória ou o “bumba-meu-boi” se não fosse o entusiasmo dos grupos da Gamboa, do Saco, da Saúde, de São Diogo, da Cidade Nova, esse entusiasmo ardente, que meses antes dos três dias vem queimando como pequenas fogueiras crepitantes para acabar no formidável e total incêndio que envolve e estorce a cidade inteira. Há em todas as sociedades, em todos os meios, em todos os prazeres, um núcleo dos mais persistentes, que através do tempo guarda a chama pura do entusiasmo. Os outros são mariposas, aumentam as sombras, fazem os efeitos.
Os cordões são o núcleo irredutível da folia carioca, brotam como um fulgor mais vivo e são antes de tudo bem do povo, bem da terra, bem da alma encantadora e bárbara do Rio.
[...]
João do Rio, trecho de “Cordões”, em A Alma Encantadora das Ruas, Companhia de Bolso.

O PRÉ-CARNAVAL
LIMA BARRETO

Entrou o ano, entrou o carnaval; e acontece isto por esse Brasil em fora. O carnaval é hoje a festa mais estúpida do Brasil. Nunca se amontoaram tantos fatos para fazê-la assim. Nem no tempo do entrudo, ela podia ser tão idiota como é hoje. O que se canta e o que se faz, são o supra-sumo da mais profunda miséria mental.
“Blocos”, “ranchos”, grupos, cordões, disputam-se em indigência intelectual e entram na folia sem nenhum frescor musical. São guinchos de símios e coaxar de rãs, acompanhados de uma barulheira de instrumentos chineses e africanos.
Na noite de 31 último, houve, como sempre, um carnaval preliminar que anuncia com muita precedência o que será o carnaval grande, na época própria. Isso aqui, em Niterói, em Belo Horizonte, em Cuiabá, etc., etc.
Os ranchos, os blocos, os grupos e os cordões saem de suas furnas e vêm para o centro da cidade estertorar cousas infames a que chamam “marchas”. Os jornais estão a postos e até põem redatores de sobressalente, para registrar nomes de diretores e outros dados importantes do bloco, do rancho, do grupo e do cordão que possam interessar os seus leitores. Um nome sair no jornal que é, em geral, cousa difícil, nesses dias é fácil. Basta que o seja do “caboclo” do cordão “Flor de Jurumbeba”.
A versalhada é publicada; e que versalhada, Santo Deus! Pior que a dos loucos dos hospícios.
Vejam esta só:
ESTRELA DE OURO
Estrela, ô minha estrela!
Estrela minha guia!
Azul, encarnado e amarelo
Que aqui na terra brilha.
Fresca estrela que brilha na terra e é azul, “encarnado” e “amarelo”!
O Aldo carnavalesco vai nos explicar a história. Ei-la:
Eu vi estar três cores
Num paraíso de flores
Por elas meu bem
Eu vivo tão cheio de amores
Vem... Dolores.
Essa versalhada é de Niterói; e, se na minha cidade se canta isso em público, tudo leva crer que lá não há polícia de costumes. Só o final...
Mas outros carnavalescos entusiastas formaram um “bloco”, denominaram-no do “Nó” e vêm mostrar aos jornais o seu saber poético. Logo na primeira estrofe do seu hino, que chamam “marcha”, denunciam que são candidatos ao primeiro prêmio de reclusão mental que em geral todos eles disputam. Leiam com cuidado esta belezinha:
Seu Fulgêncio coronel.
Eis aí o Bloco do Nó
Sempre firme no papel
De trazer alegria e só
Mas a granel.
É longa a tal marcha, por isso não a transcrevo toda aqui. Quando acabei de lê-la, tive vontade de correr à casa do autor dela e perguntar-lhe, como aquela leitura a que Mark Twain alude, no “Como me fiz redator de um jornal de agricultura”; tive vontade de correr à casa do autor da marcha, como ia dizendo, e perguntar-lhe uma, duas, três, quatro, dez, cem vezes: foi o senhor mesmo quem escreveu isto?
Não o faço, porém, porque temo que o sujeito fique indignado, imaginando que o tenho por plagiário e até me sove à vontade.
Julgo-o capaz disso, porque além de carnavalesco, é do football também.
Enfim, a leitura dessa pasmosa literatura carnavalesca só nos pode levar a uma conclusão; é que a mentalidade nacional se enfraquece e o próprio gosto popular se oblitera, em querer perder a sua espontaneidade e simplicidade.
Seja tudo pelo amor de Deus!
Careta, 14 de janeiro de 1922
Lima Barreto em Melhores Crônicas, seleção e prefácio de Beatriz Resende, Global Editora.

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