domingo, 13 de março de 2011

A família de Cartola não tem direitos?

http://www.gonzum.comPublicado originalmente por Miguel do Rosário no Gonzum e retirado em 13/03/2011 do endereço:

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Críticas de alguns ativistas à Ana de Hollanda estão ficando mais sofisticadas: de autista agora passaram a chamá-la de esquizofrênica. Imagino que o próximo adjetivo seja: psicopata.
Quem faz cultura de verdade no Brasil, no entanto, está calmo e sereno, porque nunca dependeu e nunca dependerá de Ministério nenhum. Eu me considero um ativista cultural e por isso mesmo o meu foco é a banda larga pública e acessível para todos, de preferência gratuita, como um serviço do Estado, assim como se faz com o sinal da TV aberta.
O Brasil tem que enfrentar o século XXI de frente, com ousadia, seguindo o exemplo dos asiáticos. Se ficarmos nessa moleza, vamos ficar para trás. O governo federal tem que implementar, urgentemente, uma banda larga de alta qualidade para todos os brasileiros.
Essa é a revolução cultural. Essa é a liberdade na rede.
Limitar o debate cultural à discussão de um anteprojeto de Lei que sequer foi apresentado ao Congresso e cuja aprovação pode se arrastar por anos é desvirtuar a atenção dos aspectos mais práticos e urgentes, de um lado, e também os mais intelectuais, os estudos políticos e históricos. A própria questão do direito autoral é algo cujo debate deve ser apresentado à sociedade sem nenhum clima de medo. A sociedade brasileira, o Congresso e a Presidência certamente alcançarão um denominador comum inteligente, em harmonia com as legislações de outros países e com o espírito da nossa Constituição, que é o de promover a liberdade e o desenvovimento.
Quanto ao funcionário que já assinou um livro com um advogado ligado ao Ecad, não vejo nada demais. Sou contra o Ecad, mas não vou demonizar alguém porque trabalhou com um cara que prestou serviços para o Ecad.
Quem manda no Ministério é o ministro, não um funcionário de terceiro escalão. Em se tratando da Lei de Direitos Autorais, quem manda é a sociedade, o Congresso e a Presidência da República. O ministério terá que elaborar as leis que lhe forem sugeridas, não vai inventar nada por si só.
Tem um pessoal aí que prega democracia direta, mas quando ela chega, quer voltar à representativa, ao eleger Juca Ferreira, e não a sociedade, como agente mais importante na formulação da política cultural. E quando vem a política representativa, quando Ana de Hollanda, ministra nomeada por Dilma, começa a montar a sua equipe e a expor suas opiniões, querem voltar à democracia direta, querem amordaçá-la e derrubá-la. De maneira que nunca estão satisfeitos.
E sobre os pontos de cultura, muita gente que nunca tinha ouvido deles, subitamente se tornou defensor dos mesmos. Eu queria saber mais sobre os pontos de cultura, mas confesso que não os vejo com bons olhos. A impressão que eu tenho é que ele burocratiza, vicia e escraviza movimentos populares espontâneos e autênticos, que nunca precisaram de recursos do Estado para nascer e florescer. Os pontos podem ter sido uma boa ideia num determinado momento, mas agora estão criminalizando milhares de agentes culturais, porque estes não conseguem preencher corretamente os formulários de prestação de contas e agora estão sem dinheiro e com nome sujo na praça. Juca Ferreira entregou o ministério com grande parte dos pontos de cultura sem receber há 2 ou 3 anos, devido a problemas apontados pelos tribunais. Com isso, eles ficam proibidos de receber qualquer novo financiamento antes de resolverem suas pendências.  A bomba está explodindo agora nas mãos de Ana.
Com o país em desenvolvimento acelerado, os artistas populares tem mais oportunidades de realizarem-se profissionalmente com muito mais liberdade, e ganhar muito mais do que os recursos sempre limitados do Ministério da Cultura, sobre os quais eles tem que prestar rigorosas contas, como se fosse possível ao governo entender a necessidade, por exemplo, do artista gastar seu dinheiro em cerveja. Sem contar o aspecto dirigista, que é a aprovação dos projetos por funcionários que sempre estarão distantes da realidade concreta dos lugarejos onde a cultura acontece. E o problema principal: fico imaginando como esse dinheiro, mesmo pouco, não deve desagregar comunidades, ao criar disputas intestinas sobre a forma de investi-lo.
O governo tem de ajudar os movimentos populares, mas sem amarrá-los a prestação de contas e com vistas a deixá-los independentes e não o contrário, como tem acontecido. Pode repassar verbas a fundo perdido, a título de patrocínio, por exemplo.
Eu sou a favor, sim, da profissionalização do artista, do escritor, do ator, do músico, para que tenham planos de previdência especiais e seguro desemprego, como há em toda Europa, incluindo na liberal Alemanha, onde o governo, mesmo com a crise, não reduziu os gastos em cultura.
Nesse debate sobre direitos autorais ouvi muita besteira. Um falou que o músico não tem que ganhar dinheiro com música e sim dando show. Ora, alguém já mapeou quantos milhares de artistas vivem no Brasil às custas de seus direitos autorais? Rebati: e seu o sujeito não puder mais dar show? Ele respondeu, de  um jeito que achei cínico e cruel (embora talvez essa não fosse a sua intenção): ora, se aposenta! Muito bonito! Muitas vezes, o músico tem 30 anos e já compôs obras-primas, mas não tem condição de dar mais shows. Como vai se aposentar? Um intelectual que não quer dar aulas, pode escrever livros e viver deles, porque um músico não pode fazer o mesmo?
Na verdade, essa pessoa costuma ir a shows cujos ingressos custam de 40 a 600 reais, e acham que isso sim é ser "popular".
É engraçado: Cartola chegou a virar flanelinha na Lapa, e morreu sem deixar grande coisa à família. E agora querem surrupiar os direitos autorais de sua família? Tudo isso porque fulano pode pagar 50 reais num show no Circo Voador mas não quer gastar 5 reais num CD?
Os grandes sambistas do Rio de Janeiro iniciaram suas carreiras vendendo direitos autorais de suas músicas para rádios. Assim conseguiam dinheiro e compravam as refeições e cervejas que abasteceriam sua imaginação para compor outras músicas. As rodas de samba, ao contrário dos shows que a playboyzada frequenta hoje, eram gratuitas.
É evidente que as novas tecnologias geram novas formas de distribuir a cultura. Inferir disso, porém, que devemos acabar com o direito autoral não é correto.
Amiga minha falou-me que os artistas se consideram "especiais", como se fossem uma classe privilegiada...
Na verdade são na maioria uns pobres coitados que lutam bravamente para construir o que há mais de importante para um povo: a sua cultura.
Aí ela fala que, desde o pós-modernismo, caiu o mito do artista como alguém especial na sociedade.
Certo, só que o pós-modernismo, na minha opinião, foi um movimento ultra-capitalista, que transferiu o prestígio do artista para curadores pedantes, acadêmicos oportunistas e galeristas ambiciosos.
O fato é que o Brasil ainda não construiu uma indústria cultural à altura de sua grandeza. O cinema, por exemplo, ainda é dependente de recursos governamentais, o que é bem triste para um país com tamanho potencial de público.
Escritores consagrados não conseguem viver de sua literatura, e logo se tornam dependentes do dinheiro pago por colunas publicadas em grandes jornais, com todas as consequências danosas para sua independência e honestidade intelectual, haja vista o macarthismo ideológicos desses jornais.
Outro problema gravíssimo é a dependência dos artistas de uma chancela da grande midia para se realizarem profissionalmente. Problema que não seria tão grave se as editorias de cultura dos jornais não estivessem tão sucateadas. Um jornalão paga menos de 300 reais para um articulista escrever uma resenha literária. Ora, qualquer revista de pequena circulação minimamente profissional paga o triplo disso. Acontece que, em função do prestígio de ser publicado num grande jornal, os articulistas escrevem até de graça; mas não com periodicidade, de maneira que faltam jornalistas especializados no país. Repórteres que mal entendem do assunto se convertem em críticos de arte.
Alguns jornais, verdade seja dita, tem se esforçado para aprimorar a qualidade dos cadernos de cultura, mas há um outro ponto que atrapalha o surgimento de uma crítica independente: a ideologização da mídia, que se torna cada vez mais reacionária, e mesmo sem querer acaba discriminando artistas e críticos que não partilhem de suas visões de mundo.
Em outros países, inclusive na América Latina, há uma diversidade política muito maior na mídia, de maneira que os artistas e críticos sempre encontram espaço para expor suas opiniões. A situação no Brasil é particularmente opressora. Se considerarmos apenas Rio de Janeiro, um dos principais pólos de cultura do país, temos um quadro quase totalitário, com toda uma classe artística dependendo de somente um jornal.
Essas são as minhas opiniões. Reitero que não sou dono da razão e se alguém me apresentar razões para eu mudar de ideia, ou se eu mesmo, por conta própria concluir que estou errado, eu mudo sem problema algum.
Nunca ganhei um tostão do Ministério da Cultura, nem pretendo ganhar nessa gestão. Nem acho que mereço nada. Sempre ganhei dinheiro no setor privado e quero continuar assim.
Só não quero baixaria. Por exemplo, a Regina Duarte teve sua peça aprovada pela Lei Rouanet esta semana (nem sei se foi essa semana, mas divulgou-se essa semana) e daí vieram espalhar pela rede uma mensagem maldosa: "Ana de Hollanda libera 1,2 milhão para Regina Duarte".
Desculpem-me, mas isso é baixaria pesada, pelas seguintes razões:

  1. O Ministério da Cultura aprova centenas de projetos de Lei Rouanet por semana. Sem discriminação se fulano fez campanha para PSDB ou PT. A própria insinuação de que a aprovação do projeto de Duarte não seria correta é uma visão tosca e antirrepublicana da função do Estado e do Ministério da Cultura.
  2. O dinheiro da Lei Rouanet não sai do orçamento do Ministério da Cultura (Minc), conforme dá a entender a mensagem. 
  3. A gestão Juca Ferreira sempre liberou verba para peças de teatro de Regina Duarte e demais artistas ligados à Globo. Arnaldo Jabor recebeu quantos milhões, via Lei Rouanet, pra fazer seu filme? Juca nunca discriminou artistas da direita, e nunca foi censurado por isso. Até porque seria absurdo, antiético e inconstitucional o Ministério discriminar um artista por conta de sua  posição política.
  4. A disseminação dessa mensagem, com destaque para o nome de Regina Duarte, visa explorar oportunisticamente o lado mais beligerante da militância lulista, para quem a atriz se tornou uma espécie de carantonha sinistra. 
  5. Daí compararam a "liberação" de verba para peça da Regina Duarte com a não-liberação para milhares de pontos de cultura: duas inverdades que foram conectadas apenas para fazer efeito, já que a campanha anti Ana de Hollanda perdeu as estribeiras. A primeira já foi explicada acima. A segunda, foi explicada pelo próprio Emir Sader, em sua entrevista infeliz para Folha de São Paulo. Emir explica a crise nos pontos de cultura, que não recebiam há dois ou três anos, porque, segundo ele, os agentes seriam "merdinhas" que não sabiam, como de fato não sabem, preencher os longos e complicados formulários de prestação de contas referentes aos recursos do Minc. Foi um problema estrutural dos Pontos de Cultura e um problema da gestão Juca, uma bomba que acabou caindo no colo de Ana de Hollanda. O Minc está tentando resolver, mas o Estado é proibido, por lei, de repassar verba a qualquer instituição que não esteja em dia com o próprio Eatado.

Ou seja, as mesmas estratégias usadas pela grande mídia para construir verdades e pintar personalidades e instituições com uma maquiagem pesada e maligna também podem ser usadas por gente que usa as redes sociais.

Não digo que Ana de Hollanda não tenha seus defeitos. Ela me parece ser uma pessoa insegura, por exemplo, um defeito que naturalmente ganha amplitude num momento como esse, em que ela acaba de assumir a maior responsabiliade de sua vida e está sob fogo cerrado dos grupos que eram ligados à gestão anterior. Mas me parece também uma pessoa franca e honesta. Vem de uma linhagem muito nobre de pensadores e artistas. Seria surpreendente que a filha de Sérgio Buarque de Hollanda e irmã do Chico Buarque adotasse uma postura conservadora e reacionária no Ministério da Cultura.

E ao usar os termos "conservador" e "reacionário", volto à questão dos direitos autorais, onde vemos segmentos não ligados às artes e cultura tentando sustar o debate e ganhar no grito, e ao mesmo tempo posando de arautos da esquerda, como se houvesse no mundo um manual esquerdista que chancelasse suas ideias. Não há.

A internet é algo maravilhoso e revolucionário. Eu tenho vivido dela e para ela. Mas ela é apenas uma plataforma. Eu sou a favor de museus públicos abertos, gratuitos; livros, teatro e filmes a custo acessível. Aliás, o custo do livro no Brasil apenas cresceu nos últimos anos, na contramão do mundo inteiro. Um livro novo na Europa ou EUA é muito mais barato do que no Brasil.

A nossa legislação de direito autoral dá liberdade para distribuirmos arte gratuitamente com fim didático e científico, embora talvez não com a clareza que seria necessário. A nova lei de direito autoral visa, entre outras coisas, trazer mais segurança jurídica nessas questões.

Não tem porque, como querem alguns radicais, tirarmos a única fonte de renda de artistas e de suas famílias.

Quanto ao Ecad, é outra história. Para mim, deveria ser extinto. O direito autoral no Brasil deve ser gerido pelo Estado, de preferência na forma de autarquia independente, para ninguém reclamar de aparelhamento; com um regime de transparência total e sob vigilância do Tribunal de Contas.

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