texto publicado no site da bralisiana
retirado do endereço: http://www.brasiliana.usp.br/node/450
Maria Clara Paixão de Sousa *

“A causa principal que me obrigou a lançar mão da presente história, e sair com ela a luz, foi por não haver até agora pessoa que a empreendesse, havendo já setenta e tantos anos que esta província é descoberta”...
[Trecho do "Prólogo ao leitor" |leia na íntegra]
Com essas palavras Pero Magalhães de Gândavo abre oPrólogo ao leitor da sua História da Província de Santa Cruz, o primeiro livro inteiramente dedicado ao Brasil escrito por um autor português.
Esta obra de Gândavo hoje ocupa um incontestável e merecido lugar de destaque: considerada “a primeira história do Brasil”, leitura obrigatória para os interessados no período colonial, foi recentemente objeto de excelentes edições comentadas e diversos trabalhos acadêmicos. É difícil imaginar, diante disso, que este relato pioneiro tenha permanecido escondido do mundo durante os trezentos anos que se seguiram à sua primeira impressão em 1576.
Mas a verdade é que a atenção em torno da obra de Gândavo só teve início no século XIX, depois da tradução francesa de Henri Ternaux em 1837 – até então, o livro de Pero de Magalhães havia sido deixado em relativo esquecimento pelos portugueses, como observa o tradutor em seu prefácio: “Desgraçadamente, a indiferença dos portugueses e espanhóis, mesmo para os seus melhores autores, impediu que esta obra fosse outra vez reimpressa. Tornou-se tão excessivamente rara, que não se encontrariam agora senão três ou quatro exemplares; não se acha em nenhuma Biblioteca Pública de Paris, e é raramente citada pelos autores portugueses que têm tratado do Brasil”. De fato, os séculos XVII e XVIII só viram surgir duas cópias manuscritas – anônimas – do livro impresso em 1576, que circularam obscuramente entre aficionados em Portugal.
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A edição da Typographya Brasiliense apresenta, no rosto, dedicatória de Afonso de E. Taunay a Yan de Almeida Prado
“Retrato” do Hipupiára, “monstro marinho que se matou na cidade de São Vicente”, como relata o capítulo IX: “O retrato deste Monstro he este que no fim do presente capitulo mostra, tirado pelo natural”
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Duas décadas depois da tradução de Ternaux, surgem duas novas edições impressas portuguesas da “História”, as duas no ano de 1858: uma oferecida pela Academia de Ciências, a outra pelo Instituto Histórico e Geográfico – ambas agora disponíveis em versão digital na Brasiliana-USP.
O “esquecimento” secular da obra de Gândavo se insere no contexto geral das discussões sobre o lugar reservado pelos portugueses às notícias, relatos de viagens e descrições das suas possessões na América ao longo do século XVI. Interpretado por alguns historiadores como simples desprezo, e por outros como estratégia diplomática perspicaz, esse “esquecimento” – ou segredo ? – resultou, de todo modo, na dificuldade que hoje encontramos na tarefa de contextualizar algumas dessas obras e seus autores.
É esse certamente o caso da “História” de Gândavo: pouco se sabe sobre o autor e o contexto da construção de seu relato, estando hoje em debate até se Pero Magalhães algum dia chegou a colocar os pés nas terras que descreve no livro. Alguns especialistas consideram mais provável que Gândavo tenha reunido as informações apresentadas na “História” ao longo dos anos que antecedem a publicação do texto, quando teria trabalhado nos arquivos da Torre do Tombo justamente com a tarefa de reunir e traduzir papéis relativos à ocupação das colônias. Outros, ainda, afirmam que Pero Magalhães teria estado na verdade na Índia enquanto escrevia a primeira história do Brasil... Nas obras listadas mais abaixo, o leitor poderá encontrar discussões extremamente interessantes em torno deste tema.
No texto de Gândavo, por outro lado, o que o leitor vai encontrar são momentos de grande prazer de leitura. A obra é apresentada por ninguém menos que Luís de Camões, que ofereceu tercetos e sonetos inéditos para anteceder as páginas em que Magalhães “tece sua breve história para ilustrar a terra Santa Cruz pouco sabida”. Camões e Gândavo foram contemporâneos e companheiros em diferentes contextos – entre os quais, o de compartilharem a mesma oficina tipográfica, de Antonio Gonçalves. A obra de Gândavo é, na esfera historiográfica, também companheira da obra de Camões, no seu desejo de elevar e imortalizar os grandes feitos dos portugueses. Na sua “História”, Gândavo relata as “cousas dignas de grande admiração” que há nesta província, para “dá-las a perpétua memória, como costumavam os Antigos: aos quais não escapava coisa alguma que por extenso não reduzissem a história, e fizessem menção em suas escrituras de coisas menores que estas, as quais hoje em dia vivem entre nós como sabemos, e viverão eternamente”
E por fim, tenha sido ou não o autor “testemunha de vista” (como diz ter sido) dos acontecimentos e das cenas dignas de admiração que relata, uma coisa é certa: o texto de Gândavo é tão vivo, corre com um estilo tão limpo e fluente, que as imagens que ele desenha com as palavras se levantam vivas diante dos olhos do leitor: imagens de rios caudalosos e seus peixes estranhos; imagens de tatus, onças e antas; imagens de batalhas medonhas e terríveis monstros marinhos... Quase nos sentimos “testemunhas de vista” nós, que o lemos quase quinhentos anos depois.
OUTRAS EDIÇÕES RECOMENDADAS:
Edição impressa original, 1576:
GANDAVO, Pero de Magalhães. “Historia da prouincia sa[n]cta Cruz a que vulgarme[n]te chamam Brasil / feita por Pero Magalhães de Gandauo, dirigida ao muito Illsre s[e]nor Dom Lionis P[ereir]a gouernador que foy de Malaca e das mais partes do Sul na India”. Impresso em Lisboa : na officina de Antonio Gonsaluez : vendense em casa de Ioão lopez liureiro na rua noua, 1576.http://purl.pt/121
Cópia manuscrita, século XVII:
(Desconhecido). “Tractado da terra do Brasil no qual se contem a informação das cousas que ha nestas partes feito por P.º de Magalhaes Gandavo” Manuscrito, 16--. Biblioteca Nacional de Lisboa, Manuscrito, COD-552. 16--.http://purl.pt/211
Cópia manuscrita, século XVIII:
(Desconhecido). Historia da Provincia Santa Crus a que vulgarmente chamão Brazil feito por Pero de Magalhães de Gandavo dirigira ao muito illustre senhor D. Lionis Pereira governador que foi de Malaca, e das mais partes do sul da India. Biblioteca Nacional de Lisboa, Microfilme, Cota F-24. 17--.
Edição comentada, 2004:
HUE, Sheila Moura e Menegaz, Ricardo (eds). “A primeira História do Brasil: História da província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, de Pero de Magalhâes de Gândavo”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
Edição comentada, 2008:
VALLE, Ricardo (org). “História da província de Santa Cruz”. Introdução e notas de Clara C. Souza Santos e Ricardo M. Valle. São Paulo: Hedra, 2008.
“GÂNDAVO” OU “GANDAVO” ?
Durante um bom tempo houve uma polêmica em torno da pronúncia e da grafia corretas do último sobrenome de Pero Magalhães.
Como a língua portuguesa escrita no século XVI ainda não contava com regras ortográficas amplamente aceitas, a ausência de um acento gráfico na primeira sílaba de “Gandavo” não indica necessariamente uma pronúncia não-acentuada.
Nos tempos mais recentes, a pronúncia [gan’.da.vo] (com a primeira sílaba acentuada) se tornou a mais aceita, ainda que alguns prefiram manter a grafia “Gandavo”, sem acento gráfico. Aqui optamos pela grafia moderna “Gândavo”, em consonância com a pronúncia que acreditamos ser a correta.
* Maria Clara Paixão de Sousa: Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas, Professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (DLCV/FFLCH/USP)



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