sábado, 22 de dezembro de 2007

Editorial Outubro 2007

Primeiramente, gostaríamos de agradecer à aceitação alcançada por nossa Revista Mucury já no primeiro número, onde abordamos alguns dos por quês de nossa cultura, nossa realidade, além de refletirmos sobre as questões acerca de nosso artesanato, da BAHIAMINAS e da pretensa democracia racial, na qual alguns dizem vivermos.
Devemos ressaltar a importante acolhida por parte dos acadêmicos e representantes de instituições de ensino fundamental, médio e superior, além de todos aqueles que se preocupam com o resgate da história e identidade de nosso Mucuri, num esforço concentrado de fundação de um amplo espaço para o debate franco e aberto, com vistas às discussões reflexivas acerca das mais variadas idéias concernentes a nossa realidade, muitas das quais nos deparamos todos os dias nos variados meios de comunicação.
Agradecemos nossos apoiadores, cuja ajuda financeira é fundamental para a realização deste nosso laborioso projeto, pois contamos com esta ajuda para ampliarmos os horizontes de nossa Revista e Associação Histórico Cultural Mucury.
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De mesma forma, gratos estamos aos colaboradores que nos enviaram seus textos no número anterior e neste que ora se apresenta.
Reconhecemos e consideramos todos os comentários, críticas, observações, vindos de nossos leitores e de você, que a partir do recebimento deste novo exemplar passa a integrar essa comunidade de leitura. In Sha Allah – Deus queira –consigamos manter este ritmo e trazer um refrigério, um refrescor à cultura do Vale do Mucuri, palco de tanta luta, vida, suor e sangue para a construção desta nossa cidade e região.
Mas o que fazer depois da escrita de todas estas linhas ou, ainda, após a efetiva leitura? Permanecermos em nossos mesmos lugares seria assinarmos qualquer sentença que não àquela cujo objetivo e conseguir que atinjamos certeiramente nosso espírito! Nada de vaidades infantis ou dissertações a respeito das (des)vantagens de nos debruçarmos sobre entidades caquéticas ou putrefatas pelo mero exercício da repetição sem reflexão. Devemos nos armar do sentimento de pertencimento a uma história e cultura comuns, para saborearmos nossa identidade. Identidade esta que parece guardada em alguma tuia à espera de uma semeadura alienígena dum planeta distante ou recém chegado das brumas de Dom Sebastião, antigo rei português desaparecido em batalha e que por muito tempo esperaram sua volta gloriosa para a restauração do Grande Império Português – então, já falido!
Como tantos sonhadores acreditam talvez seja preciso, quem sabe, que nos sacrifiquemos por nossas convicções, por nossos sonhos e ideais, mas, de certo, não precisamos tão longe ir. De imediato é preciso que desloquemos a motivação dos olhares. Necessitamos empreender ações pautadas pela realidade histórica em detrimento de uma concepção onírica e feérica do mundo ao redor. Para isso, basta que tomemos as rédeas de nossa existência, não de forma irresponsável ou utópica. Realmente devemos cada vez mais nos conscientizar de nosso papel social, seja como estudantes, trabalhadores, professores, gestores. Somos os responsáveis por nossa cultura, nossos patrimônios e nossa sociedade.
Junte-se a nós na campanha pelo resgate de nossa estima e identidade। Este é o papel da Revista Mucury.
BENTO, Bruno Dias (*). Editorial. In Revista Mucury. set/2007,ano 1, nº 1. Teófilo Otoni, MG.
(*) Cientista Social, Diretor Geral da Associação Histórico Cultural Mucury. Professor de História da Cooperativa Educacional de Teófilo Otoni.
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AFETO E PATRIMÔNIO. RELAÇÃO CONCILIÁVEL? (1)


Em pleno século XXI, ainda vivenciamos inúmeros problemas relacionados a questões relativas a divisão da herança e as dificuldades decorrentes da formação, gerenciamento e transmissão do patrimônio entre os indivíduos.
Se os problemas da divisão da herança não são nenhuma novidade em nossa sociedade, ocorre que as suas conseqüências podem ser desastrosas para os indivíduos, especialmente, no momento post-mortem do pater-familias ou do cabeça de casal, quando da existência ou não de órfãos. A sucessão patrimonial torna-se extremamente importante, na medida em que determina para os indivíduos as possibilidades da sobrevivência familiar, do acompanhamento do poder público e da legislação para o gerenciamento do quinhão entre os herdeiros, por meio dos direitos adquiridos sobre os bens inventariados.
Ao discutirmos acerca da problemática da herança, devemos deixar claro que, o pano de fundo de toda essa rede de intrincados conflitos origina-se na forma de organização familiar e das novas formas de convívio estabelecidas por essas uniões em nossa sociedade.
O pano de partida dessas mudanças verificadas hoje em nossa sociedade tem vínculo direto com a revolução cultural deflagrada nos anos 60 e 70 do século XX. A revolução sexual acarretou novos valores onde, aparentemente, eliminaram-se os antigos tabus, transformando como bandeira de feministas européias, americanas e latinas o direito à informação sexual e ao prazer, incluindo da homossexualidade à zoofilia, passando pelo voyerismo, legitimando na contramão do discurso igualitário todas as atitudes sexuais.
Na carona da liberdade sexual ficou visível a atuação de uma juventude como um grupo de consciência própria, transformando-o politicamente em agente social capaz de mobilizações estupendas, por meio dos movimentos estudantis mundiais. A repercussão desta autonomia abriu espaços para os avanços dos perfis políticos, da economia de mercado para o consumo de bens, no internacionalismo do blue jeans, do rock, e da abertura cada vez mais crescente dos jovens nas universidades, tornando o contato entre rapazes e moças mais estreitos.
A revolução cultural atingiu a cultura jovem nos modos e nos costumes, nos meios de desfrutar o lazer, as artes, o consumo, as relações afetivas. O jargão bastante conhecido e usado “estar na sua” expressava o mínimo de restrição externa para qualquer ato ou comportamento encontrando efeito correlato no também famoso “é proibido proibir” ou “quando penso em revolução quero fazer amor” utilizado largamente em maio de 1968.
As mudanças puderam ser verificadas também na nova postura de controle da mulher para a função procriadora, incluindo o direito ao aborto, a projeção do número de filhos com um controle de natalidade antes desconhecido, o direito ao divórcio, a mudança com relação à honra feminina, sendo questionados e modificados os padrões acerca da importância da virgindade antes do casamento e da necessidade da fidelidade conjugal.
Neste novo cenário, a mulher desponta como uma parceira economicamente ativa capaz de contribuir não somente para a manutenção da família, mas, também, participando financeiramente na aquisição de bens, que refletem diretamente na ampliação do patrimônio conjugal. Como “cabeça de casal”, a mulher torna-se responsável economicamente por famílias inteiras. Se na década de 60 tal projeção das mulheres no mercado de trabalho era concebida como uma forma de realização profissional, nas décadas seguintes concretizou sua participação como uma necessidade para a manutenção e sobrevivência das famílias.
Assim como o caráter moderno deu uma nova conformidade à família, trouxe também um emaranhado de conflitos. As novas formas de afetividade, baseadas entre os modelos heterossexuais, homossexuais ou bissexuais, estabelecem pactos de maior ou menor liberdade de vivência e expressão da individualidade, da divisão das despesas entre os parceiros, deslocando essa responsabilidade para ambos, o que antes era atribuição unicamente do homem. Talvez a mudança mais profunda esteja relacionada com a exigência, cada vez maior, da satisfação sexual bilateral entre os parceiros. Evidentemente, tais mudanças provocam uma série de deslocamentos para a vivência de uma vida em comum pautada em novos valores morais e emocionais, que exigem o enfrentamento de novos desafios.
Nesta perspectiva, a visão da instituição da família adquire contornos pouco nítidos, fazendo-nos crer, por ora, que este modelo está fadado a desaparecer. Os dados estatísticos apresentados pelas pesquisas e estudos recentes corroboram para o surgimento de um quadro negativo e preocupante, quando o assunto é a análise do comportamento acerca da freqüência e durabilidade do casamento e dos reflexos das dissoluções destes em nossa sociedade. Nos Estados Unidos, por exemplo, o índice de divórcios é da ordem de 60%, além de ser cada vez mais comum o número de casas sustentadas por indivíduos solteiros. Na Inglaterra o índice de divórcios está na ordem de 40%, na Suécia 50% dos matrimônios chegam ao divórcio, na Espanha 10 a 12% dos matrimônios terminam em divórcio, porém somente 60% das mulheres espanholas se casam.
Nos países que têm o divórcio aprovado, a tendência atual é a realização de pesquisas com o intuito não apenas de disporem de dados mas, a partir destes, estabelecerem medidas e ações, tanto pessoais quanto governamentais, para promoverem o incentivo junto aos casais para o fortalecimento do matrimônio. Nesta ordem de coisas o divórcio passa a ser considerado, para muitos, não apenas uma questão pessoal, para tornar-se uma questão de saúde pública, pelos múltiplos e negativos efeitos que provoca nos indivíduos. Diminui a saúde, as expectativas de vida e a sensação de felicidade na vida pessoal de homens e mulheres. Agrava problemas econômicos, gerando empobrecimento, principalmente das mulheres. Conduz à dissolução do patrimônio conjugal, concorrendo para perdas na educação dos filhos, incluindo, neste leque de dificuldades, maior incidência de problemas emocionais, aumento do índice de violência e desvio de comportamento das crianças e adolescentes – consumo de álcool, drogas, adoção de condutas de risco -, além de provocar a dependência dos serviços de assistência do Estado como educação e saúde, gerando, conseqüentemente, maiores gastos estatais e alto custo socioeconômico.
No Brasil, verificamos que os brasileiros se casam cada vez menos e mais tarde. Por outro lado, os casamentos que resultam em dissoluções duram mais – em média 10,5 anos em 2000 contra 9,5 em 1991 – e o número de divórcios e separações está estabilizado. Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), usando os números de 1996 do IBGE, 69% dos jovens brasileiros com idade de 25 a 35 anos têm um cônjuge. Entre esses 31% vivem as chamadas uniões informais, ou seja, não são formalmente casados. Diante deste quadro, um dos caminhos apontados é nos libertar do jargão bastante comum de que a instituição do casamento ou da família vai acabar e, na medida do possível, ampliarmos nossa percepção considerando que, hoje, a influência de novos fatores atua diretamente nas escolhas e nas diferentes vivências dos indivíduos acerca das uniões conjugais.


(1) Este texto faz parte de uma reflexão maior que se encontra na dissertação defendida pela autora. Esta discussão terá continuidade no próximo número.
FREITAS, Maira De Oliveira(*). Afeto e Patrimônio. Relação Conciliável? In Revista Mucury. out/2007,ano 1, nº 2. Teófilo Otoni, MG.p.01.
(*) MAIRA DE OLIVEIRA FREITAS é mestre em História Social da Cultura, pela UFMG, com a dissertação INVENTÁRIOS POST-MORTEM RETRATO DE UMA SOCIEDADE. ESTRATÉDIA PATRIMONIAL, PROPRIEDADE SENHORIAL E POSSES DE ESCRAVOS NA COMARCA DO RIO DAS VELHAS (1780/1806). Atualmente pesquisadora do Instituto Yara Tupynambá e professora de História da Fundação Educacional do Vale do Jequitinhonha/FEVALE.
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Cultura e Tristeza no Brasil

“Numa terra radiosa vive um povo triste [...] legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram”. Esse é o Retrato do Brasil desenhado por Paulo Prado (1928), para quem toda essa tristeza do povo brasileiro vem da intensidade de apetites sem ideais durante a formação do Brasil, onde luxúria e cobiça sobrepuseram-se a quaisquer parâmetros éticos e morais. Ao lado do excesso do sexo, a fascinação pelo ouro teria provocado o enfraquecimento da energia física e diminuição da atividade mental dos frutos da mistura de raças.

Aventura sexual, cobiça e aversão ao trabalho: teriam sido essas, segundo Prado, as maiores barreiras a uma visão positiva do trabalho, principalmente entre setores dominantes, que delegavam, na ponta da espada, essa arriscosa tarefa aos índios, negros e toda sorte de mestiços. A cobiça foi o motor insaciável da expansão do Brasil, adentro de si mesmo, e a luxúria foi o motor insaciável da miscigenação. Segundo Prado, mais do que isso não poderia se esperar de um país que é inicialmente colonizado pela escória européia – degredados, náufragos e outros aventureiros em busca da fortuna –, uma amálgama de “linajes obscuros y bajos”.

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Bem, que povo é esse descrito por um filho dileto da elite cafeeira paulista? Que imagem contrastaria mais com aquela compartilhada por muitos de nós de um país alegre e paradisíaco? Para essas questões, poucos anos depois de Prado, Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (1936), propõe ao Brasil uma identidade que não é apenas algo ainda em aberto, mas uma sociedade nova, portadora de ambigüidade, fruto da colonização européia, mas que não se amolda bem a sua herança. E, em Visão do Paraíso (1977), Holanda mostra que a imagem de um país paradisíaco nunca foi muito difundida entre os portugueses – apesar de ser uma imagem corrente da América para os vizinhos espanhóis. Assim, a colonização portuguesa nunca teve o caráter civilizatório que pregava Gilberto Freyre em sua vasta obra, predominando sempre o caráter exploratório – não havia paraíso na terra.

Todos os “excessos” descritos por Prado, e o projeto exploratório para Holanda, culminaram na impossibilidade de desenvolvimento de instituições políticas e sociais condizentes com as características culturais do Brasil. Tentou-se sempre copiar as que deram certo em outros países: o sistema político, a organização do Estado e sistema jurídico, entre outros. Todas essas instituições, quando aqui integradas às relações sociais, ou aprofundaram e reificaram a desigualdade das relações sociais, favorecendo determinados setores, ou serviram como mera fachada que apenas encobria outros tipos de ações duvidosas.

Como não existir uma parcela significativa do povo que viva constantemente triste e melancólica nesse país? Não devido aos excessos libidinosos dos nossos colonizadores centenários, mas à cobiça histórica e descarada do que comumente se chama “elites”. Travestidos hoje em figurões de terno e gravata – traje, aliás, não muito coerente com o clima local –, muitos dos degredados, náufragos e aventureiros do passado circulam por aí defendendo seus próprios interesses e “trabalhando” pra si mesmos, mas sempre em nome do povo.


NETO, Arnaldo Lôpo Mont'Alvão (*). Cultura e Tristeza no Brasil. In Revista Mucury. out/2007,ano 1, nº 2. Teófilo Otoni, MG.p.05.


(*) Cientista Social, Mestrando em Sociologia pela UFMG.
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Música e Identidade

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Quando buscamos recuperar elementos culturais capazes de nos identificar como membros pertencentes a uma coletividade comum, muitos são os objetos, as práticas, os predicados acionados que cumprem o papel de desvelar o “lugar social” do qual se está falando. Ao nos reportarmos à nação brasileira logo se arrola um bocado desses traços tidos como peculiares, que nos dá a distinção frente outras comunidades nacionais. Alguns preferirão dizer sobre um certo ethos brasileiro, que constrói um tipo sestroso, lascivo, indolente. Outros apontarão para signos cujo valo semântico re (a) presenta a nação, tal como sua bandeira, a seleção canarinho, ou o seu panteão de heróis nacionais. No entanto, ao longo de nossa experiência republicana, podemos evidenciar um processo de fundação da nação que conta com a ajuda preciosa, luxuosa, da canção popular brasileira. Ou alguém nunca escutou a narrativa mito-fundacional escancarada em Aquarela do Brasil? Ali a nação se cria sob os auspícios da intelectualidade coeva, de um samba cívico que guarda uma capacidade de contar e recontar infinitas vezes a nossa tradição inventada. Digo isso para “abrir as cortinas” e trazer à ribalta, ao proscênio, a importância do signo sonoro para a construção de uma identidade coletiva.
A música é capaz não só de inventar tradições, que consigam fomentar um senso de pertencimento homogêneo em pessoas separadas por distâncias continentais, como no Brasil, mas também pode, mesmo, estruturar toda a rítmica social de dada comunidade. Ela “abre a cortina do passado” para enlaçar presente e futuro num encontro mítico que oferece significado histórico. Uma canção transborda o significado meramente estético e carrega consigo a possibilidade de ser tomada como símbolo, indo além do fenômeno físico-sonoro e sendo incorporada, como imagem, ao conjunto de representações que abastecem determinado imaginário social e consagra a história e a identidade de uma nação.
É muito comum, ao menos nas regiões que compõem o nosso gigante-país, que as manifestações musicais ofereçam os mais evidentes e persuasivos argumentos, os mais nítidos vestígios daquela tradição. Em cada manifestação musical, os elementos constitutivos daquela comunidade são revigorados, os laços sociais são cerzidos numa comunhão que parece transcender as enormes diferenças localizadas no momento fundacional da sociedade brasileira. A canção, com toda a sua força dinamogênica, que passa e enlaça um certo estado psíquico e nos leva à ação, talvez seja nosso mais privilegiado local de construção e debate de nossa esfera pública. Num país onde a persistência do analfabetismo e uma certa prática de leitura reflexiva fazem parte da realidade ordinária, a canção se estabelece como nosso maior cronista do cotidiano, capaz de interpretar e debater nossas querências, mazelas, mas também responsável por doar significado a nossa existência compartilhada, ao todo reunido sob a chancela da pátria.
No esforço concentrado dessa publicação, que, entre outros objetivos, parte para a ação de reconstruir ou (re)inventar a tradição do vale do Mucuri, faz-se necessário voltar as atenções ao que canta o vale. O resgate e estabelecimento da importância sócio-cultural do Mucuri, passa necessariamente pelo reencontro de seus significantes musicais. Vai aqui uma aposta: lendo as canções seremos capazes de construir uma imagem acústica indelével, robusta, expostas em acordes e construções melódicas, uma sinfonia popular, apresentada em vários atos, nomeada Mucuri.
Quando buscamos recuperar elementos culturais capazes de nos identificar como membros pertencentes a uma coletividade comum, muitos são os objetos, as práticas, os predicados acionados que cumprem o papel de desvelar o “lugar social” do qual se está falando. Ao nos reportarmos à nação brasileira logo se arrola um bocado desses traços tidos como peculiares, que nos dá a distinção frente outras comunidades nacionais. Alguns preferirão dizer sobre um certo ethos brasileiro, que constrói um tipo sestroso, lascivo, indolente. Outros apontarão para signos cujo valo semântico re (a) presenta a nação, tal como sua bandeira, a seleção canarinho, ou o seu panteão de heróis nacionais. No entanto, ao longo de nossa experiência republicana, podemos evidenciar um processo de fundação da nação que conta com a ajuda preciosa, luxuosa, da canção popular brasileira. Ou alguém nunca escutou a narrativa mito-fundacional escancarada em Aquarela do Brasil? Ali a nação se cria sob os auspícios da intelectualidade coeva, de um samba cívico que guarda uma capacidade de contar e recontar infinitas vezes a nossa tradição inventada. Digo isso para “abrir as cortinas” e trazer à ribalta, ao proscênio, a importância do signo sonoro para a construção de uma identidade coletiva.
A música é capaz não só de inventar tradições, que consigam fomentar um senso de pertencimento homogêneo em pessoas separadas por distâncias continentais, como no Brasil, mas também pode, mesmo, estruturar toda a rítmica social de dada comunidade. Ela “abre a cortina do passado” para enlaçar presente e futuro num encontro mítico que oferece significado histórico. Uma canção transborda o significado meramente estético e carrega consigo a possibilidade de ser tomada como símbolo, indo além do fenômeno físico-sonoro e sendo incorporada, como imagem, ao conjunto de representações que abastecem determinado imaginário social e consagra a história e a identidade de uma nação.
É muito comum, ao menos nas regiões que compõem o nosso gigante-país, que as manifestações musicais ofereçam os mais evidentes e persuasivos argumentos, os mais nítidos vestígios daquela tradição. Em cada manifestação musical, os elementos constitutivos daquela comunidade são revigorados, os laços sociais são cerzidos numa comunhão que parece transcender as enormes diferenças localizadas no momento fundacional da sociedade brasileira. A canção, com toda a sua força dinamogênica, que passa e enlaça um certo estado psíquico e nos leva à ação, talvez seja nosso mais privilegiado local de construção e debate de nossa esfera pública. Num país onde a persistência do analfabetismo e uma certa prática de leitura reflexiva fazem parte da realidade ordinária, a canção se estabelece como nosso maior cronista do cotidiano, capaz de interpretar e debater nossas querências, mazelas, mas também responsável por doar significado a nossa existência compartilhada, ao todo reunido sob a chancela da pátria.
No esforço concentrado dessa publicação, que, entre outros objetivos, parte para a ação de reconstruir ou (re)inventar a tradição do vale do Mucuri, faz-se necessário voltar as atenções ao que canta o vale. O resgate e estabelecimento da importância sócio-cultural do Mucuri, passa necessariamente pelo reencontro de seus significantes musicais. Vai aqui uma aposta: lendo as canções seremos capazes de construir uma imagem acústica indelével, robusta, expostas em acordes e construções melódicas, uma sinfonia popular, apresentada em vários atos, nomeada Mucuri.
Quando buscamos recuperar elementos culturais capazes de nos identificar como membros pertencentes a uma coletividade comum, muitos são os objetos, as práticas, os predicados acionados que cumprem o papel de desvelar o “lugar social” do qual se está falando. Ao nos reportarmos à nação brasileira logo se arrola um bocado desses traços tidos como peculiares, que nos dá a distinção frente outras comunidades nacionais. Alguns preferirão dizer sobre um certo ethos brasileiro, que constrói um tipo sestroso, lascivo, indolente. Outros apontarão para signos cujo valo semântico re (a) presenta a nação, tal como sua bandeira, a seleção canarinho, ou o seu panteão de heróis nacionais. No entanto, ao longo de nossa experiência republicana, podemos evidenciar um processo de fundação da nação que conta com a ajuda preciosa, luxuosa, da canção popular brasileira. Ou alguém nunca escutou a narrativa mito-fundacional escancarada em Aquarela do Brasil? Ali a nação se cria sob os auspícios da intelectualidade coeva, de um samba cívico que guarda uma capacidade de contar e recontar infinitas vezes a nossa tradição inventada. Digo isso para “abrir as cortinas” e trazer à ribalta, ao proscênio, a importância do signo sonoro para a construção de uma identidade coletiva.
A música é capaz não só de inventar tradições, que consigam fomentar um senso de pertencimento homogêneo em pessoas separadas por distâncias continentais, como no Brasil, mas também pode, mesmo, estruturar toda a rítmica social de dada comunidade. Ela “abre a cortina do passado” para enlaçar presente e futuro num encontro mítico que oferece significado histórico. Uma canção transborda o significado meramente estético e carrega consigo a possibilidade de ser tomada como símbolo, indo além do fenômeno físico-sonoro e sendo incorporada, como imagem, ao conjunto de representações que abastecem determinado imaginário social e consagra a história e a identidade de uma nação.
É muito comum, ao menos nas regiões que compõem o nosso gigante-país, que as manifestações musicais ofereçam os mais evidentes e persuasivos argumentos, os mais nítidos vestígios daquela tradição. Em cada manifestação musical, os elementos constitutivos daquela comunidade são revigorados, os laços sociais são cerzidos numa comunhão que parece transcender as enormes diferenças localizadas no momento fundacional da sociedade brasileira. A canção, com toda a sua força dinamogênica, que passa e enlaça um certo estado psíquico e nos leva à ação, talvez seja nosso mais privilegiado local de construção e debate de nossa esfera pública. Num país onde a persistência do analfabetismo e uma certa prática de leitura reflexiva fazem parte da realidade ordinária, a canção se estabelece como nosso maior cronista do cotidiano, capaz de interpretar e debater nossas querências, mazelas, mas também responsável por doar significado a nossa existência compartilhada, ao todo reunido sob a chancela da pátria.
No esforço concentrado dessa publicação, que, entre outros objetivos, parte para a ação de reconstruir ou (re)inventar a tradição do vale do Mucuri, faz-se necessário voltar as atenções ao que canta o vale. O resgate e estabelecimento da importância sócio-cultural do Mucuri, passa necessariamente pelo reencontro de seus significantes musicais. Vai aqui uma aposta: lendo as canções seremos capazes de construir uma imagem acústica indelével, robusta, expostas em acordes e construções melódicas, uma sinfonia popular, apresentada em vários atos, nomeada Mucuri.

LIMA, Ricardo (*). Música e identidade. In Revista Mucury. out/2007,ano 1, nº 2. Teófilo Otoni, MG.p.04.
(*)Ricardo Lima é Historiador, Cantor e Copositor. Também é o Editor da Revista Mucury
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MINAS AO MAR

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Ligar o continente ao oceano. Fazer Minas ver o mar. Foi o objetivo e o início de um sonho. Começaram suas obras, desbravando matas, rios, cachoeiras, montanhas, pedras, lugares que jamais o homem branco havia pisado. Enfrentaram a fúria dos índios botocudos, a malária e animais selvagens. Muito sol, muita chuva e muito suor derramado, além de algumas mortes. Os pontilhões foram trazidos da Inglaterra. A construção dos túneis e das estações, feitos com muito capricho e paciência. Foram sessenta anos de luta, sofrimento e idealismo para a construção de uma ferrovia que faria a ponte entre a ousadia e a realidade.

Poxichá, primeira locomotiva vinda das Américas em 1880, nome do cacique poxichá de uma tribo indígena. Dezoito anos depois chegaram os trilhos. Foi realmente um acontecimento fabuloso. Foram os primeiros passos para ligar as cidades, os dois vales, os dois estados. O engenheiro Miguel Argolo foi o responsável pela obra. Partia do município de Caial - hoje Araçuaí -, passando por povoados e cidades como Alfredo Graça, Emílio Schnoor, Queixada, Novo Cruzeiro, Ladainha, Sucanga, Icari, Caporanga, Valão, até chegar a Teófilo Otoni, que naquela época chamava-se Filadélfia. Aqui era a estação central, onde ficava os Diretores e o comando. Em Ladainha ficava a oficina - cidade de tal importância que chegou a ter três cinemas. Partindo de Teófilo Otoni, tinham as estações das turmas 37, 38, Pedro Versiani, São João, Bias Fortes, Francisco Sá, Bangalô, Epaminondas Otoni, Carlos Chagas, Mayrink, Nanuque, Serra dos Aimorés e Ibiraem, divisa com o estado da Bahia. Em terras baianas, passava por Argolo, Posto da Mata, Helvécia, Juerana, Caravelas, chegando até Ponta de Areia. Também existiam as chamadas casas de turma a cada 10 quilômetros, locais onde se fazia a manutenção da estrada e das caixas de água.

Enfim, o mar. Eram 578 quilômetros de ferrovia, que transportava, até o porto de Caravelas, mercadorias e pessoas. Era o nosso acesso às praias. Viajava a 20 quilômetros por hora na subida e aproximadamente 50 quilômetros por hora em declive. Consumia muita lenha e muita água. Sua caldeira era um calor infernal. No porto, nossa carga era embarcada em navios rumo aos mais variados cantos do Brasil. Ali, também, recebíamos mercadorias vindas de outros portos para abastecimento do nosso comércio. Funcionava muito bem.

O caminho da esperança e do progresso durou 86 anos. No ano de 1966 foi realizado a última viajem. Como num passe de mágica as máquinas e trilhos foram retirados com radicalismo e crueldade. Algumas estações, como a nossa, foram demolidas. Em vez de suor, lágrimas foram derramadas.

Mas a ferrovia não morreu. Entre casas, montanhas e o mar está o sonho de unir continente ao oceano.
O trem de ferro é uma coisa mecânica, mas atravessa a noite, a madrugada, o dia. Atravessou minha vida e virou um só sentimento.

DETREZ, Éder (*). Minas ao Mar. In Revista Mucury। out/2007,ano 1, nº 2. Teófilo Otoni, MG.p.03.
(*) Médico e Presidente da Associação Cultural Ferroviária BAHIAMINAS.
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