sábado, 22 de dezembro de 2007

AFETO E PATRIMÔNIO. RELAÇÃO CONCILIÁVEL? (1)


Em pleno século XXI, ainda vivenciamos inúmeros problemas relacionados a questões relativas a divisão da herança e as dificuldades decorrentes da formação, gerenciamento e transmissão do patrimônio entre os indivíduos.
Se os problemas da divisão da herança não são nenhuma novidade em nossa sociedade, ocorre que as suas conseqüências podem ser desastrosas para os indivíduos, especialmente, no momento post-mortem do pater-familias ou do cabeça de casal, quando da existência ou não de órfãos. A sucessão patrimonial torna-se extremamente importante, na medida em que determina para os indivíduos as possibilidades da sobrevivência familiar, do acompanhamento do poder público e da legislação para o gerenciamento do quinhão entre os herdeiros, por meio dos direitos adquiridos sobre os bens inventariados.
Ao discutirmos acerca da problemática da herança, devemos deixar claro que, o pano de fundo de toda essa rede de intrincados conflitos origina-se na forma de organização familiar e das novas formas de convívio estabelecidas por essas uniões em nossa sociedade.
O pano de partida dessas mudanças verificadas hoje em nossa sociedade tem vínculo direto com a revolução cultural deflagrada nos anos 60 e 70 do século XX. A revolução sexual acarretou novos valores onde, aparentemente, eliminaram-se os antigos tabus, transformando como bandeira de feministas européias, americanas e latinas o direito à informação sexual e ao prazer, incluindo da homossexualidade à zoofilia, passando pelo voyerismo, legitimando na contramão do discurso igualitário todas as atitudes sexuais.
Na carona da liberdade sexual ficou visível a atuação de uma juventude como um grupo de consciência própria, transformando-o politicamente em agente social capaz de mobilizações estupendas, por meio dos movimentos estudantis mundiais. A repercussão desta autonomia abriu espaços para os avanços dos perfis políticos, da economia de mercado para o consumo de bens, no internacionalismo do blue jeans, do rock, e da abertura cada vez mais crescente dos jovens nas universidades, tornando o contato entre rapazes e moças mais estreitos.
A revolução cultural atingiu a cultura jovem nos modos e nos costumes, nos meios de desfrutar o lazer, as artes, o consumo, as relações afetivas. O jargão bastante conhecido e usado “estar na sua” expressava o mínimo de restrição externa para qualquer ato ou comportamento encontrando efeito correlato no também famoso “é proibido proibir” ou “quando penso em revolução quero fazer amor” utilizado largamente em maio de 1968.
As mudanças puderam ser verificadas também na nova postura de controle da mulher para a função procriadora, incluindo o direito ao aborto, a projeção do número de filhos com um controle de natalidade antes desconhecido, o direito ao divórcio, a mudança com relação à honra feminina, sendo questionados e modificados os padrões acerca da importância da virgindade antes do casamento e da necessidade da fidelidade conjugal.
Neste novo cenário, a mulher desponta como uma parceira economicamente ativa capaz de contribuir não somente para a manutenção da família, mas, também, participando financeiramente na aquisição de bens, que refletem diretamente na ampliação do patrimônio conjugal. Como “cabeça de casal”, a mulher torna-se responsável economicamente por famílias inteiras. Se na década de 60 tal projeção das mulheres no mercado de trabalho era concebida como uma forma de realização profissional, nas décadas seguintes concretizou sua participação como uma necessidade para a manutenção e sobrevivência das famílias.
Assim como o caráter moderno deu uma nova conformidade à família, trouxe também um emaranhado de conflitos. As novas formas de afetividade, baseadas entre os modelos heterossexuais, homossexuais ou bissexuais, estabelecem pactos de maior ou menor liberdade de vivência e expressão da individualidade, da divisão das despesas entre os parceiros, deslocando essa responsabilidade para ambos, o que antes era atribuição unicamente do homem. Talvez a mudança mais profunda esteja relacionada com a exigência, cada vez maior, da satisfação sexual bilateral entre os parceiros. Evidentemente, tais mudanças provocam uma série de deslocamentos para a vivência de uma vida em comum pautada em novos valores morais e emocionais, que exigem o enfrentamento de novos desafios.
Nesta perspectiva, a visão da instituição da família adquire contornos pouco nítidos, fazendo-nos crer, por ora, que este modelo está fadado a desaparecer. Os dados estatísticos apresentados pelas pesquisas e estudos recentes corroboram para o surgimento de um quadro negativo e preocupante, quando o assunto é a análise do comportamento acerca da freqüência e durabilidade do casamento e dos reflexos das dissoluções destes em nossa sociedade. Nos Estados Unidos, por exemplo, o índice de divórcios é da ordem de 60%, além de ser cada vez mais comum o número de casas sustentadas por indivíduos solteiros. Na Inglaterra o índice de divórcios está na ordem de 40%, na Suécia 50% dos matrimônios chegam ao divórcio, na Espanha 10 a 12% dos matrimônios terminam em divórcio, porém somente 60% das mulheres espanholas se casam.
Nos países que têm o divórcio aprovado, a tendência atual é a realização de pesquisas com o intuito não apenas de disporem de dados mas, a partir destes, estabelecerem medidas e ações, tanto pessoais quanto governamentais, para promoverem o incentivo junto aos casais para o fortalecimento do matrimônio. Nesta ordem de coisas o divórcio passa a ser considerado, para muitos, não apenas uma questão pessoal, para tornar-se uma questão de saúde pública, pelos múltiplos e negativos efeitos que provoca nos indivíduos. Diminui a saúde, as expectativas de vida e a sensação de felicidade na vida pessoal de homens e mulheres. Agrava problemas econômicos, gerando empobrecimento, principalmente das mulheres. Conduz à dissolução do patrimônio conjugal, concorrendo para perdas na educação dos filhos, incluindo, neste leque de dificuldades, maior incidência de problemas emocionais, aumento do índice de violência e desvio de comportamento das crianças e adolescentes – consumo de álcool, drogas, adoção de condutas de risco -, além de provocar a dependência dos serviços de assistência do Estado como educação e saúde, gerando, conseqüentemente, maiores gastos estatais e alto custo socioeconômico.
No Brasil, verificamos que os brasileiros se casam cada vez menos e mais tarde. Por outro lado, os casamentos que resultam em dissoluções duram mais – em média 10,5 anos em 2000 contra 9,5 em 1991 – e o número de divórcios e separações está estabilizado. Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), usando os números de 1996 do IBGE, 69% dos jovens brasileiros com idade de 25 a 35 anos têm um cônjuge. Entre esses 31% vivem as chamadas uniões informais, ou seja, não são formalmente casados. Diante deste quadro, um dos caminhos apontados é nos libertar do jargão bastante comum de que a instituição do casamento ou da família vai acabar e, na medida do possível, ampliarmos nossa percepção considerando que, hoje, a influência de novos fatores atua diretamente nas escolhas e nas diferentes vivências dos indivíduos acerca das uniões conjugais.


(1) Este texto faz parte de uma reflexão maior que se encontra na dissertação defendida pela autora. Esta discussão terá continuidade no próximo número.
FREITAS, Maira De Oliveira(*). Afeto e Patrimônio. Relação Conciliável? In Revista Mucury. out/2007,ano 1, nº 2. Teófilo Otoni, MG.p.01.
(*) MAIRA DE OLIVEIRA FREITAS é mestre em História Social da Cultura, pela UFMG, com a dissertação INVENTÁRIOS POST-MORTEM RETRATO DE UMA SOCIEDADE. ESTRATÉDIA PATRIMONIAL, PROPRIEDADE SENHORIAL E POSSES DE ESCRAVOS NA COMARCA DO RIO DAS VELHAS (1780/1806). Atualmente pesquisadora do Instituto Yara Tupynambá e professora de História da Fundação Educacional do Vale do Jequitinhonha/FEVALE.

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