quarta-feira, 25 de abril de 2012

Feito de Ferro e Flor

Retirado da Revista Continuum do Itaú Cultural em 25/04/12 do endereço:

http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2720&cd_materia=1889

Cláudio Assis, caruaruense nato, homem do agreste, faz do cinema seu árido território.

Por Karen Harley (*)

Quando falo com Claudio por telefone, sempre fico mais alegre e dou algumas risadas. Claudio tem humor, conta histórias engraçadas, me deixa à vontade. Mas nem sempre foi assim. Eu tinha medo de Claudio Assis até conhecê-lo. Pela sua fama de chato e polêmico, por gostar de confusão, de excesso de botequim e de sinceridade. Um dia, ele ligou para me convidar para montar o seu segundo longa-metragem, Baixio das Bestas. Nunca tinha trabalhado com ele, só o conhecia de vista e de uma reunião na extinta Associação Brasileira de Documentaristas de Pernambuco, onde ele desceu o verbo. Em dez minutos de telefonema, já estava brigando comigo. Eita! – pensei: “Isso não vai dar certo. Como posso montar um filme com um sujeito tão estourado?”. Mas a paixão pelo seu cinema, as pessoas da equipe e o gosto pelo desafio me fizeram aceitar o convite.Na época, eu morava em Belo Horizonte e ele foi para lá para montarmos o filme. Nos primeiros dias, o clima era de poucas palavras; havia uma tensão no ar. Não nos conhecíamos, nós nos estranhávamos até. O tema do filme, a violência contra mulheres e a falta de afeto, a macheza nordestina dos agroboys, a aridez das relações, também não ajudava muito. Sabia que precisava conquistar uma cumplicidade com o diretor para poder trabalhar de forma mais livre e autônoma e propor novas possibilidades narrativas.

Logo percebi uma grande qualidade no Claudio: ele sabia escutar. E respeitava as minhas opiniões. Começamos a ter diálogos instigantes e me contaminei com a euforia criativa dele. Era entusiasmado e generoso. Numa tarde, ele disse: “Esse filme agora é teu. Tome e receba. Te vira!”. Essas palavras, ao mesmo tempo duras e carinhosas, bem ao estilo Claudão, demonstram a confiança e a união que ele tem com a sua equipe. Do roteirista ao contrarregra, ele deixa todos se sentirem parte do processo criativo. E o resultado dessa parceria percebe-se na tela. Eu recebi o filme, me virei (com ele) e nos tornamos amigos. Perdi o medo. Claudio Assis é um caruaruense nato, um homem do agreste. Tem o dom da palavra e uma aridez peculiar, um carinho que é seco, bruto, às vezes confundido com agressividade. Eu aprendi a me entender com suas palavras. Quando elas estão excessivas, peço para trabalhar sozinha e o Claudio respeita.

Na montagem do Febre do Rato, já existia cumplicidade. Esse terreno havia sido conquistado. Havia a complexidade natural de montar um filme de Claudio Assis, dificultado pelo fato de o diretor resolver criar 34 novas cenas durante a filmagem (além das que já estavam no roteiro), que eram nomeadas de “Epidermes” na claquete e que não tinham lugar determinado na estrutura narrativa. Todas as cenas eram epidermes profundas, lindas e tinham de entrar. Assim como era e é linda a poesia de Zizo, o personagem principal. Poemas lindamente recitados por Irandhir e escritos por Hilton Lacerda, mas um pouco longos para o filme. O comentário de Claudio: “Pensei em você durante a filmagem e não queria facilitar. Achou que ia ser fácil?”. E ria. Ele gosta de rir. Não foi fácil, mas foi um presente. O filme mais lírico que ele fez; fala de amizade, afeto, confiança, tesão, febre de vida e poesia. Considerando essas palavras, penso que elas poderiam definir o próprio Claudão, além de lembrarem Gregório Bezerra, conterrâneo pernambucano, que se dizia feito de ferro e flor. Algo assim também é a matéria bruta de Claudio Assis.

Ao final da exibição do Febre do Rato, no Festival de Roterdã, em janeiro passado, Claudio foi perguntado por que filmou em preto e branco e no Recife: “Porque nasci lá, mas se tivesse nascido em Amsterdã ou em Roterdã seria a mesma coisa. Porque o que tenho é de dizer o que sinto, ter coragem de ser o que sou, de não ser medíocre”. Esse depoimento sintetiza outra característica de Claudão: ele é um homem que vive intensamente e tem um profundo senso de observação.  Não é cinéfilo nem um estudioso da linguagem cinematográfica, mas os seus filmes têm uma força estética poderosa e um rigor formal incomum. É um homem político e político também é o seu cinema. Seja para falar da violência contra mulheres da zona da mata pernambucana, seja para falar dos marginalizados urbanos, poetas e anarquistas de uma Recife decadente. A verve vem de sua própria experiência de vida e tem reflexo em seus personagens. No seu último filme, o poeta Zizo é um homem intenso, chegado à polêmica, fiel aos amigos, corajoso, generoso, doce. É um homem de excessos, de muitos, como se define à sua musa Eneida.  Zizo, renegado por uns e adorado por outros. Assim como o Claudão.

(*) Karen Harley é montadora de cinema. Entre as produções em que atuou, estão Cinemas, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, 2005) e Baixio das Bestas (Claudio Assis, 2007). Repete a parceria com esse cineasta em Febre do Rato, longa que estreia em maio.

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