quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Produção audiovisual indígena–entrevista com Vincent Carelli

Do Blog Acesso

Por Bernardo Vianna

O trabalho do Vídeo nas Aldeias teve início em 1986, a princípio como uma experiência de apropriação, pelos indígenas, da construção de sua própria imagem por meio da linguagem audiovisual. Seu idealizador, o antropólogo Vincent Carelli, conta que, ao longo desses 27 anos, o projeto tomou várias direções, “formação de cineastas indígenas, produção de autores indígenas, programas na TV. O Vídeo nas Aldeias tenta se encaixar para ver qual a contribuição que pode dar em determinado momento do país”.

Hoje, o momento ao qual o projeto precisa se adaptar envolve a precarização de políticas públicas voltadas à diversidade cultural, como o Cultura Viva, que impulsionou inúmeras ações culturais durante a última década. Outro elemento desse cenário são as mídias e redes sociais, das quais muitos indígenas já fazem uso desde que tais tecnologias começaram a se popularizar no Brasil.

Além de comercializar os vídeos em seu catálogo, o Vídeo nas Aldeias disponibiliza, na internet, séries e materiais pedagógicos voltados ao ensino fundamental. Confira o livro-vídeo Cineastas Indígenas para Jovens e Crianças e o Guia para professores e alunos do Kit “Cineastas Indígenas: Um outro olhar”. Os vídeos também podem ser acessados nos canais do projeto no YouTube e no Vimeo.

Acesso – Você poderia sintetizar para o leitor como surgiu e qual a proposta do Vídeo nas Aldeias?

Vincent Carelli – Há mais de 40 anos trabalho com índios. Em 1986, resolvi fazer esse projeto mais como uma experiência de apropriação da imagem pelos índios, da imagem deles. De lá para cá, passados 27 anos, o projeto tomou várias formas, primeiro uma coisa mais interna, depois a formação de cineastas indígenas, a produção de autores indígenas, os programas na TV; o Vídeo nas Aldeias tenta se encaixar para ver qual a contribuição que pode dar em determinado momento do país. Fizemos uma série para a TV Escola [a série Índios no Brasil] que durante uma década foi exibida nas TVs públicas. Hoje, a gente investe muito em fazer a produção indígena chegar às escolas. Há essa nova lei que torna obrigatório abordar a temática das culturas indígenas e afrodescendentes de maneira transversal, o que abriu uma possibilidade para a gente dialogar com o público estudantil. Em 2013, fizemos uma série de filmes infantis com guias didáticos para o ensino fundamental, com recursos da Unesco. Estamos agora fazendo um filme sobre a tragédia do povo Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul e vamos iniciar, este ano, um processo de formação de cineastas entre os Guarani Kaiowá. Temos trabalhado não só a apropriação da própria imagem pelos índios como a produção de uma nova imagem e o diálogo com a sociedade nacional. Existe uma ignorância sobre a questão indígena muito grande, um fosso de invisibilidade nacional.

Acesso – O discurso sobre os povos indígenas, quando por eles construído, serve como contraponto à imagem estereotipada vigente?

V. C. – É um contraponto no sentido de que o olhar é diferenciado, não é um olhar exotizante, é um olhar intimista. Até pela própria linha de ensino que a gente adota, o cinema direto, que é um cinema observacional, na contramão do clipe televisivo. A produção indígena, o olhar indígena, desconstrói esse estranhamento. Os índios, quando falam deles mesmo, falam, muitas vezes com muito humor, do seu cotidiano, da sua vida, de tudo o que nos aproxima deles, a humanidade. É um contraponto sim, a produção indígena revela, transporta você para a intimidade de um mundo que poderia parecer estranho, mas não, o que transparece é humanidade. Isso é uma coisa que marca, que atrai, que ganha o público de uma maneira geral.

Acesso – E qual o impacto das novas tecnologias digitais e das mídias e redes sociais sobre o trabalho do Vídeo nas Aldeias?

V. C. – Você está falando de várias coisas ao mesmo tempo. Quanto à questão tecnológica, saímos do analógico e fomos para o digital. Claro que facilitou muito, até na finalização. Antigamente, no analógico, uma ilha de edição custava 250 mil dólares. De repente, passou a custar quatro mil, fora a agilidade que isso permitiu. Mas há também uma armadilha nesse processo. Acabou a fita e isso quer dizer que os índios têm que ter acesso a toda uma parafernália nova. Ninguém trabalha mais sem computador, sem internet. Aquele gravadorzinho K7 que eles tanto gostavam para gravar e ficar ouvindo já não existe mais. Eles agora têm um gravador digital, mas não têm um computador para baixar, enfim, existem algumas dificuldades.

Quanto à circulação da informação nas redes sociais, realmente eles aderiram muito rapidamente. Eu confesso que passei batido pelo Orkut, mas os indígenas caíram de boca logo quando essa rede apareceu. O perfil do Vídeo nas Aldeias tem quatro mil e tantos amigos no Facebook e, entre eles, provavelmente 40% são jovens e adolescentes indígenas. Você vê que há uma necessidade de abertura para o mundo, de criar laços de amizade, laços de aliança. Já sobre a questão Guarani Kaiowá, eu não costumo buscar informação no jornal, os índios têm um blog, uma página, e postam diariamente o que acontece em toda a região. Eles têm uma articulação para a circulação de informação, as redes sociais viraram, realmente, um novo espaço de circulação de informação livre. Tem do melhor e do pior, mas você pode criar a sua rede de informação e por aí se cria uma nova perspectiva. O genocídio Guarani Kaiowá acontece há pelo menos três décadas, mas ele conseguiu chegar ao público brasileiro, de fato, agora nessa nova era.

Acesso – Qual sua avaliação das políticas públicas para o fomento do audiovisual indígena?

V. C. – A gente teve um programa na TV que foi de suma importância, que mostrava a necessidade de um espaço indígena na TV pública. Mas houve um retrocesso tão grande na política cultural brasileira... O Vídeo nas Aldeias, por exemplo, ganhou um grande impulso na era Gil [período em que Gilberto Gil foi ministro da Cultura], com o Cultura Viva, para financiar oficinas, equipar comunidades indígenas. Todo esse investimento na diversidade, em dar voz a quem nuca teve voz, tudo isso acabou, foi desmantelado, burocratizado.

Acesso – No ano passado foi encaminhada, à Secretaria do Audiovisual, a Carta de Diamantina, demandando uma política específica para o audiovisual indígena.Qual foi a resposta?

V. C. – Nem sequer responderam. A gente pediu uma audiência para conversar, trocar ideias juntos, mas enfim. Hoje em dia, a área em que o Vídeo nas Aldeias tem um know-how, em que produz coisas interessantes, é na formação. Mas não tem mais, no Brasil, verba para formação. E formação gera produção. Estamos, inclusive, fechando uma parceria com o Mídia Ninja para equipar os índios do Mato Grosso do Sul. A gente vai fazer uma divulgação em streaming ao vivo da audiência pública marcada para fevereiro, dos depoimentos, das atrocidades que foram cometidas. Eu acho que está mais fácil trabalhar por esses canais do que voltar a ter um programa na TV Brasil.

Retirado daqui em 22/01/2014.

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