terça-feira, 18 de novembro de 2008

PLURAL > jornal hoje em dia

A hora da viola

César Macedo


ESPECIAL PARA O HOJE EM DIA

De descendência portuguesa e aclimatada nos mais longínquos rincões do Brasil há vários séculos, a viola é o instrumento-símbolo da cultura rural e sertaneja. Seu nome pode variar de região para região (caipira, cabocla, de arame, de pinho...), assim como suas formas de afinação: cebolão, rio-abaixo, boiadeira, meia-guitarra, cebolinha, cana-verde, do sossego...

Seis representantes das Gerais agora unem seus esforços para dar mais visibilidade ao instrumento e às suas inúmeras possibilidades melódicas e sonoras: Pereira da Viola, Chico Lobo, Joaci Ornelas, Gustavo Guimarães, Bilora e Wilson Dias. No final de outubro, eles formataram o espetáculo «Viva Viola - 60 Cordas em Movimento», mutirão que lotou o Teatro Alterosa durante três dias. A idéia é que o projeto seja desmembrado em shows, a partir de 2009, e tenha caráter itinerante, podendo reunir outros violeiros.

A essência permanece inalterada _ o instrumento é feito de madeira, principalmente o pinho, e ostenta dez cordas unidas aos pares. O mais importante: está intimamente ligado às tradições mais enraizadas da cultura brasileira desde a época colonial. Assim como São Paulo, Goiás e o Nordeste, Minas é prenhe de violeiros e manifestações que utilizam a viola como protagonista de festejos como a folia de reis.
O multimídia João Evangelista Rodrigues e seu parceiro musical Pereira da Viola são mentores do movimento. «A viola é agregadora, festiva, propícia a encontros», defende Pereira, mineiro de São Julião, zona rural do Vale do Mucuri, Norte de Minas. Ele é um criadores da Associação Nacional dos Violeiros, fundada em 2004 e que promoveu, no primeiro semestre de 2008, em Belo Horizonte, seu primeiro seminário. «Os shows, o entretenimento, os discos são importantes, mas é necessário que haja desdobramentos em ações mais concretas que ajudem a preservar a memória da nossa cultura popular em suas mais variadas manifestações, incluindo aí a presença fundante do instrumento».

Sobre a Associação, Pereira da Viola define sua linha de atuação: «Sempre achei que nós, violeiros, precisávamos de uma instituição que nos representasse de forma mais organizada e que fosse capaz de amplificar o que cada um fazia. A cultura da viola estava relegada ao esquecimento algumas décadas atrás. Não posso negar que minha geração conseguiu tirá-la do ostracismo e que hoje há um espaço relativamente digno para sua difusão, mas ainda não chegou aos patamares que a gente deseja para colocar o instrumento».

Pesquisador da cultura popular, João Evangelista Rodrigues comunga das mesmas propostas. «Nesse mundo globalizado em que a velocidade e os modismos imperam, é fundamental que um país preserve sua cultura de raiz. Os brasileiros têm que ter uma visão ampla do que seja a viola caipira e da sua relevância na preservação de uma música autêntica dentro do nosso contexto histórico e sócio-cultural. É necessário um esforço coletivo de pesquisas e registros para que a memória seja preservada. Muitos mestres violeiros estão morrendo e essas referências estão sendo perdidas», lamenta Evangelista, que além de Pereira da Viola, tem parcerias com Gilvan de Oliveira, Paulinho Pedra Azul, Rubinho do Vale e outros.

Nascido em Santana, no Oeste mineiro, Rodrigues avalia que a viola caipira tem muita força no interior, mas carece de identidade e expressão nacional. Por isso ele aposta nas ações da Associação Nacional dos Violeiros. «Penso nisso de forma mais conceitual. Muitas vezes, a mídia dá exposição apenas ao aspecto da espetacularização, que é uma visão restrita e que tem a ver meramente com o apelo comercial. Muitas vezes, os critérios artísticos e culturais ficam relegados a segundo plano, submetidos a questões relacionadas ao mercado e à competitividade. A viola ainda tem muito espaço para ocupar. Minha tendência é a de focar os fenômenos culturais de forma mais lenta, porém, com mais profundidade».


Quando o signo das cordas encontra o coração das pedras

João Evangelista Rodrigues (*)


ESPECIAL PARA O HOJE EM DIA

O que pode nos ensinar uma pedra. E a viola, nos ensinaria alguma coisa?

Não seria totalmente correto afirmar que a viola caipira (dez cordas), à maneira do avião, foi inventada por algum gênio brasileiro. O que a maioria ignora ou finge ignorar, por conveniência ou preconceito inerente a certo tipo de saber estabelecido e hegemônico, é que este instrumento foi e continua sendo o que mais fielmente traduz o sentimento, a alma e o saber do povo brasileiro, sobretudo do homem rural.
Desde que chegou ao Brasil, por volta de 1500, trazida pelos jesuítas e utilizada na catequese dos índios, a viola permanece viva. Não é exagero afirmar que, aqui, desempenha uma nova função: a de seduzir, conquistar e educar pessoas através de sua sonoridade particular e singela. Pode-se falar, então, parodiando o Poeta Pernambucano, de uma educação pela viola. Seja por sua capacidade de reunir pessoas, de sensibilizar mentes e corações, seja pela força de seu sotaque ao mesmo tempo mágico e realista.

O violeiro e compositor Wilson Dias explica: «Assim que semeada em solo brasileiro, a viola foi passando por diversas transformações. Com a miscigenação de raças, veio a ser a fiel companheira do homem do campo. Tornou-se, portanto, um instrumento de extrema importância cultural. Por toda sua história e pelo seu potencial inventivo e mobilizador de sentidos e sentimentos, a viola não passa despercebida».
Nem mesmo o ambiente pós-modernizante e o alarido violento e ensurdecedor do neoliberalismo conseguem calar sua voz. A linguagem da viola, em sua diversidade, sobrevive e se faz ouvir atualmente não só pelo conteúdo das mensagens veiculadas, mas devido a sua natureza afetiva e solidária.

É pela viola que o cantador e compositor Pereira da Viola se define. «Sou daqueles violeiros que, através de um suporte histórico e sonoro da viola, grita por justiça, mete o dedo nas feridas de forma clara e sem medo. Por isso, acho que a viola, pela sua história, pode ser também entendida como aliada no processo de transformação social».

A educação pela viola, à maneira da pedra, se dá «de dentro para fora e pré-didática». Isso acontece no mais longe. Na intimidade mesma das casas, das coisas afastadas. Lá onde residem os mestres, os menestréis de antonce. Os cantadores de fibra. Afiados de palavra. Afinados dos instrumentos, todos da vida natural, feito igual ao que na pedra a faca se afia. Feito o que no tear se fia. Os que sem aprendizagem prévia, sabem. Por intuição. Por descoberta.

Assim, ouvir uma boa música de viola, no melhor estilo de nossa tradição, é ver. Olhar de perto as coisas. Observar e degustar o mundo em constante movimento. São cenas e cenários de muitas Minas, de vários mundos, de um país interior e anterior. Por isso, à frente de toda crise e pessimismos, é preciso cantar, encantar, decantar sobre nuvens. Desvelar o sono mineral das coisas insignificantes. Dar-lhes luz e cor, conforme seja o tom e a densidade da voz, da letra musicalizada.

(*) João Evangelista Rodrigues é poeta, compositor, jornalista, fotógrafo e professor universitário. Os destaques em texto são fragmentos de poema de João Cabral de Melo Neto.


ESPECIAL PARA O HOJE EM DIA

Instrumento tipicamente rural, a viola foi «urbanizada» aos poucos. Historiadores apontam o folclorista paulista Cornélio Pires como o iniciador do processo. Em 1910, ele organizou um programa só com violeiros na cidade de Tietê e, em seguida, um festival na capital paulista. Desde então, a viola é naturalmente vinculada à cultura do campo, e não apenas a música caipira pode ser entoada pelas dez cordas do instrumento, que passeiam, inclusive, por searas eruditas. A variação sonora e melódica é infinita e, como afirma Pereira da Viola, «não pode ser submetida apenas a um gueto».

Muitos artistas preferem chamar, genericamente, de «música de viola» tudo o que é produzido com o instrumento. «A música sertaneja tomou outro rumo, a música caipira também acabou representando um tipo específico de interpretação feito por duplas», explica Valmir Ribeiro de Carvalho, mais conhecido pelo nome artístico de Bilora. «Então, o que cada um faz individualmente e que não cabe em nenhum rótulo, dizemos que é música de viola, na falta de uma definição mais precisa», observa.

Natural de Santa Helena de Minas, no Vale do Mucuri, Bilora, outro participante do encontro «Viva Viola», também elogia a iniciativa e espera desdobramentos: «O mutirão reuniu amigos que militam em prol do mesmo objetivo: chamar a atenção para a viola. Juntando forças, é possível engrandecer o trabalho individual pela troca de experiências».

Para ele, em muitos aspectos falta romper a barreira do preconceito. «Eu viajo muito para participar de festivais e sinto isso na pele. Quando submeto uma música minha a um suposto especialista, ele olha até com certa condescendência, demonstra carinho, mas vê a música de viola como algo exótico. É difícil que alguém a encare como instrumento de sonoridade nova. Há sempre uma associação com algo ultrapassado».
Um dos fundadores da Associação Nacional dos Violeiros, Joaci Ornelas, natural de Salinas, no Vale do Jequitinhonha, diz que os principais objetivos da entidade são o de colaborar para o desenvolvimento da linguagem musical da viola e preservar e difundir a cultura popular ligada ao instrumento. Responsável pela realização do seminário ocorrido em BH no primeiro semestre, a Associação pretende lançar, ano que vem, farto material em DVD, CD e livro registrando os debates travados, envolvendo mais de 600 pessoas.

«Sabemos por relatos históricos que os jesuítas utilizavam a viola como forma de amenizar e tornar lúdico o contato com os índios. Não entro no mérito de como esse processo civilizatório se deu, mas o fato serve para ilustrar como a viola está muito enraizada na história do Brasil», comenta Joaci Ornelas, esperando que, para 2009, a segunda edição do seminário movimente Belo Horizonte e traga propostas mais concretas para ações de valorização do patrimônio imaterial representado pela viola e suas sonoridades. 


 

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