segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Turbossílabas de Léo Lobos por Antonio Arroyo Silva

Retirado do site da Aliás, revista eletrônica de cultura em 11/02/13 do endereço:

http://www.aliasrevista.com/index.php?option=com_content&view=article&id=48%3Aturbossilabas&catid=54%3Aensaios-a-resenhas&Itemid=37

Por Antonio Arroyo Silva

Tradução: Maria Eugenia Gay-Brussino

Para Benjamín, essa inocência que ilumina.

Não sei por que os livros de poesia às vezes são tão especiais. Talvez o sejam aqueles que nasceram de uma palpitação, ou que ao longo dos anos a sua existência tem alcançado um alto nível de energia. Há palavras que nascem mortas pois, por pretensão, esgotam o seu dizer. Ao contrário, outras, que recém-nascidas apenas são um sopro, com os anos adquirem a força de um furacão. Acontece que, quando temos a fortuna de ler um desses livros, sentimos um impulso de emoção imenso e, ao tentar abordá-lo de um ponto de vista minimamente crítico, podemos cair na tentação da exaltação deformante. Não é exatamente o que me aconteceu com essa antologia que reúne os poemas do poeta chileno Leo Lobos. Muitas viagens que medeiam no autor de uma data à outra (França, Estados Unidos, Brasil, México...) têm lhe dado esse tom universalista de cidadão do mundo, além do que herdou dos seus antecessores da poesia chilena. Um poeta que transcende não somente as fronteiras físicas, mas da própria língua, quando submerge na tradução de poetas brasileiros com a mesma soltura e carinho com que escreve os seus próprios textos. Nesse sentido, Leo Lobos não é o típico "traduttore tradittore" mas alguém que capta a respiração de outro poeta e a conduz à sua língua. Um tradutor consciente e defensor de uma linguagem universal da poesia, e aliás, poeta. Outra fronteira que atravessa é a da própria palavra, a eletricidade que produz a palavra ao ser articulada. Daí a outra cara da sua obra: a poesia visual. Um número infinito de sugestões nos traz à mente essa face do autor; mas agora vamos nos ocupar com Turbossílabas , seu livro de poemas.

Inventar paraísos e infernos através da palavra é narrar, é levar a mente humana além de onde o pensamento consigue alcançar. Porém, da necessidade de narrar a vida de uma pessoa surge a magia da poesia. Não se trata, pois, de fixar gêneros literários nem de dilucidar a adscrição dessa obra.

É real o tom narrativo que comenta a autora do prólogo do livro, como reais são o profundo lirismo que vai além da metafísica de manual de uso. Trata-se da vida, onde (é um fato) está e deve estar todo o referente da poesia, que nada diz àquele que não se deixe levar pela inocência primigênia. Neste ponto, a intenção do autor é inversa a do simples narrador: não a grande mentira expansiva da ficção narrativa mas a verdade nua de todo saber ulterior ao fato da própria vida. Embora essa verdade seja contraditória.

O próprio poeta, desde o início, nos faz uma declaração de intenções focada sempre na vida e pela vida. Testemunha de um trabalho que pode ser chamado de poesia, ideias líquidas como o sangue, barcos que silenciosamente chocam com o nada, delírios, augúrios, amor, cartas que se escapam da mão, garrafas jogadas no mar durante anos, fumaça e álcool, vozes, livros, sonhos, vigílias, partidas e cavalos pretos de xadrez, filmes, profecias, viagens, dinheiro, solidão, fotos e óleos, desenhos, sol e tormentas, amizade, música, palavras, signos, enigmas voltando do esquecimento.

Não a vida a partir da escritura anterior, mas escrever com o corpo, este que carregamos.

Desta forma, despersonalizando o fato literário, deixando-o nu ao relento do viver, chega a palavra inaugural à poesia de Leo Lobos. Palavra que retorna do esquecimento; mas chega acompanhada de todos esses objetos e ações que circundam o existir e fazem parte da sua aura. Palavras que com o roce dos objetos recuperam sua música e fluem como rios de energia vital e dada a sua vocação líquida não renunciam à sua expansão em direção ao mar próximo, que não separa mas que une, pois nos transcende. Não viver vidas de ficção e gastar energias ocultando-se no texto mas expandir a vida própria para procurar esse Uno que somos. Uma ideia orientalista que não parte dos conhecimentos prévios mas que forma o tecido da respiração do autor: se bem sabê-lo, fazendo-o bem. Assimilação, diria eu, rejeição da batuta da tradição literária, essa que se constrói na base de recortes celulares para achar a razão do vazio.

Claro que há uma tradição que Leo Lobos recolhe na sua escrita, tanto das suas leituras de Jorge Teillier, Enrique Lihn, Nicanor Parra, Gonzalo Rojas… como do entusiasmo que esses autores lhe transmitiram em vida, o hálito das suas poéticas, esse estranhamento e afastamento crítico da literatura oficialista para aprofundar em um coloquialismo que lhes conferiu maior vitalidade na expressão.

Também há que nuançar a importância que nosso autor tem dado aos grandes romancistas de ficção científica. Já os escritores norte-americanos da beat generation viram nesse gênero, não uma literatura de evasão e entretenimento, mas uma busca de utopias possíveis e impossíveis. Nova Express de William Burroughs é um exemplo. Deleuze procurando a pulsão do rizoma na expressão. Mas aliás, temos a presença de Frank Herbert e Isaac Asimov.

A ficção científica, a princípio considerada um gênero narrativo menor pela Academia, assume na poesia de Leo Lobos entidade de utopia como as de Platão, Tomás Moro ou Erasmo de Rotterdam. O poeta vê neles não a evasão romântica em direção a mundos imaginários e fantásticos, mas a presença de uns visionários que veem a humanidade expandida pelo universo procurando a inocência do berço primeiro ou passeando por entre as dunas da sua própria desolação projetada para um futuro longínquo, onde, apesar de todos os obstáculos, o ser humano irá encontrar uma saída na sua própria energia vital. Desta forma, Leo Lobos não pisca na hora de citar esses autores junto dos poetas chilenos. Citações, diga-se, desatreladas de toda intenção academicista ou pós-moderna. Não no sentido que lhe deram os novíssimos espanhóis dos anos 80. É sua maneira de que estes personagens participem no poema-vórtice posterior. Não personagens, como diz o prólogo, mas integrantes de uma conversa intemporal que se estende aos leitores. Vozes corais estrategicamente colocadas na tecelagem acadêmica do poema. Visionário, pois ele mesmo poeta. Desta maneira aponta ao homem da cidade, como um ser contraditório (como ser humano que é) que algumas vezes se vê como um pequeno deus e outras como a criatura mais ínfima da criação em toda sua finitude e desassossego, que nem sequer pára para pensar em sua finitude.

Quando passe nada,

e o céu se estraçalhe sobre nossas

cabeças, e entremos a empurrões no

cemitério, como

vacas mortas

no vivedouro.

Eis aqui a urbe onde o ser humano se transforma em homúnculo, que se dilui entre a multidão e se despersonaliza, onde mais do que a morte realmente lhe espanta a vida. É a primeira morte da que fala o poeta, a inanição da consciência do Um cujo destino é se integrar em uma totalidade também unitária. Porém,

No haverá no

paraíso outra

morte.

Não a haverá, claro, pois o ser perde desta forma sua identidade, está perdido do dizer, pois

Quantas vezes depois

de morrer

tem sentido ganas de viver,

e provar o que se sente.

Isto é o que o poeta chama a morte grande. Note-se a agilidade que produzem os solapamentos que não somente se dão nesses exemplos mas ao longo de todo o poemário. Uma utilização que vai além do retórico e nos coloca no plano do visual. Desta maneira, por exemplo, o céu cai sobre nossas cabeças ou há uma dissociação entre o paraíso e sua concreção, pois entre ele e paraíso aparece um abismamento visual, como se cortasse o cordão umbilical entre o homem e o seu desejo de transcender. Textualidade que aspira e chega aos níveis do caligrama. É um olhar-ler, como diz Leo Lobos, é a voz que se toca. Não é estranho que o poeta irrompa no território do visual, pois, neste sentido, esta outra faceta vem a ser não a outra cara da mesma moeda, mas dois aspectos que se intercomunicam e se complementam.

A tudo isso há que somar esse ritmo sincopado que nos remete ao jazz. De novo o urbano e a forma possível de liberação das correntes alienantes das grandes cidades. Uma música que procede dos escravos rurais negros norte-americanos que acalmavam suas penas com o soul e sorriam apesar de todos seus males. Sorriso de jazz para que o ser humano possa recuperar a individualidade da sua consciência que uma vez esteve apegada e consoante com a natureza.

"Olhar o olho desse falcão e assustar-se/Não do olho, mas da sua alegria". Nesse díptico de O homem da guitarra azul de Wallace Stevens vejo um resumo do que venho dizendo, e que Leo Lobos manifesta dessa maneira tão sugestiva ao longo da sua viagem pelas ruas de todas as cidades do mundo que percorre no poemário e na sua vida. Assustar-se dos sentimentos que surgem do centro de cada um, assustar-nos de olhar no espelho e ver que apesar de tudo brilhamos. Medo não de conhecer mas de conhecer-nos. E tudo porque os seres humanos observam a triangular estruturação da vida que não diz nada a ninguém descalço de perguntas. Quiçá quando todas as palavras percam o seu sentido primeiro, sobrevivam os batimentos elétricos de umas sílabas carregadas de eletricidade batente de um coração vivo que irradie energia e luz desde um lugar tão longínquo como nós mesmos.

Antonio Arroyo Silva: nascido em Santa Cruz de La Palma, Canarias, Espanha, em 1957. Bacharel em filologia Hispánica pela Universidad de la Laguna e professor de Língua e Literatura espanhola. Foi colaborador de revistas em papel, como Artymaña, La menstrua Alba (de Canarias), Zurgai (de Bilbao) e de revistas como a Sociedad de Escritores de Chile, Cinosargo, a Antología de Poesía Mundial de Fernando Sabido entre outras. Publicou os livros de poemas: Las metamorfosis (Cabildo Insular de La Palma, 1991) Esquina Paradise (El Vigía Editora, 2008) e Caballo de la luz (El Vigía Editora, 2010). Em preparação tem os seguintes poemários: Symphonia, Marzo, Fila Cero, Poética de Esther Hughes y Casi luz. Foi 2º premio no concurso de poesia de Granadilla (Tenerife), en 1981. Participou no Festival Internacional de Poesía encuentro 3 Orillas (Tenerife 2009) e no Homenaje de Poetas del Mundo a Miguel Hernández (junio de 2010). Atualmente é vocal da Asociación Canaria de Escritores.

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