quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Depois do do-in antropológico

 

Por Leonardo Brant publicado originalmente no cultura e mercado em 30 de outubro 2010 e retirado do endereço:
O impacto simbólico de Lula na presidência da República é algo tão grande e significativo para a nação brasileira, que foi preciso repensar a política de cultura. Foi dado ao músico e compositor Gilberto Gil o cargo de Ministro da Cultura. O artista-ministro já trazia uma carga simbólica em si, não somente por ser negro, artista e baiano, mas também pela relevância de sua obra e seu envolvimento histórico com movimentos políticos e sociais.

O impacto de seu discurso inicial foi enorme. O ministro pregava uma visão mais ampla de cultura em sua função política. Deixaria de ser mero commodity nas mãos de grandes corporações para se transformar em elemento fundador da construção das identidades e ativador da rica diversidade cultural no Brasil.

Gil definiu três dimensões para a ação do ministério: “cultura como usina de símbolos, cultura como direito e cidadania, cultura como economia”. Surge o do-in antropológico. A ideia era reposicionar o Estado, que assumiria sua responsabilidade cultural em todas as instâncias da sociedade, seja na diversidade de costumes, das crenças, educação, ciências ou comunicação, além de alavancar uma dimensão cultural do desenvolvimento.

A tentativa de fortalecer o Ministério da Cultura foi em parte bem-sucedida, com a instauração de um novo discurso, mais potente, e que reserva ao Estado sua competência e responsabilidade. Mas, na prática, o que ocorreu foi um aumento gradual da utilização das Leis de Incentivo, saindo da casa dos R$ 300 milhões para os atuais R$ 1,2 bilhão por ano, em 2007, sem aumento dos investimentos públicos na mesma proporção.

Como a Lei de Incentivo tornou-se soberana e onipresente, justamente pela falta de outros mecanismos que auxiliem na difícil missão de financiar a vasta e rica produção de um país como o Brasil, ela acaba levando a fama pelo que não consegue abarcar. Hoje em dia, há quem atribua todos os problemas do teatro, das artes visuais e da indústria fonográfica à Lei Rouanet. Será que ela detém realmente esse poder?

O próprio MinC achava que não, mas fez vista grossa para o problema. O fortalecimento de outras musculaturas atrofiadas faria surgir o equilíbrio de forças. Mas o tempo da coisa pública é diferente da vontade dos governantes e o ambiente contaminado do financiamento à cultura tornou a solução impraticável.

Alguns projetos levados a cabo pelo MinC, como a criação da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual), que visava regular o cinema e a produção audiovisual no país, e o Sistema Nacional de Cultura, que criaria um pacto federativo em torno da gestão pública de cultura, foram abandonados ou diluídos (e retomado recentemente, com outra cara). O mesmo ocorreu com as câmaras setoriais de cultura, que buscavam organizar os setores em torno do desenvolvimento de suas cadeias produtivas.

O Ministério da Cultura abriu diálogos com a sociedade por meio de uma série de seminários, conferências e workshops em todos os estados brasileiros. Essa ação contribuiu para ampliar a percepção pública do papel do Estado diante da cultura. O Plano Nacional de Cultura, por exemplo, vem pautando questões importantes para o futuro das políticas culturais, como a legislação de direitos autorais e o financiamento público às artes. O mesmo se aplica ao programa Cultura e Pensamento, que busca a reflexão sobre as questões que afetam a cultura e a sociedade.

Alguns programas, como Cultura Viva, além dos editais de seleção pública e valorização da cultura popular, inspirados claramente na política populista de Vargas, merecem destaque. Eles trazem agora um novo referencial, o do-in antropológico, que oferece uma visão mais atenta para o estímulo da diversidade cultural, a partir do desenvolvimento local. Se por um lado, são reflexos da contribuição e da inovação desse novo modelo de gestão cultural proposto por Gil, sofrem, por outro, da precariedade administrativa e falta de investimentos públicos que o qualifiquem como uma ação de alcance nacional.

A institucionalização desses programas dentro de uma visão contemporânea e republicana é fundamental para a consolidação do importante legado em âmbito nacional das propostas de Marilena Chauí e Gilberto Gil para as políticas culturais.

* texto extraído do livro O Poder da Cultura.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente