domingo, 14 de novembro de 2010

Regulação da mídia e da cultura

 

Texto de Leonardo Brant publicado originalmente no Cultura e Mercado e retirado em 14/11/2010 do endereço:

Regulação da mídia é o tema da vez. Aparece-nos às vezes sob ameaça de censura, necessidade de controle social, urgência em democratizar os meios de comunicação. O problema é antigo no Brasil. E sua solução depende de destrincharmos uma série de questões mal resolvidas em nossa recente democracia. Acima de tudo, é preciso compreender o processo de transformação e convergência que os sistemas de comunicação, público e privado, sofrem no país e no mundo. O que o transforma cada vez mais em uma questão cultural: de cidadania, diversidade e democracia.

Sem a pretensão de esgotar o assunto, tentarei elencar aqui algumas dessas dimensões, que compõem um emaranhado de difícil compreensão e resolução:

Política e religião – Todos sabemos como se construiu o poder da Rede Globo no país, financiada pela ditadura (e depois pelos governos democráticos) e amparada por uma rede de oligarcas, sobretudo no nordeste de Sarney, Collor e companhia limitada, unindo poder político com presença midiática. Não podemos deixar de acrescentar nesse caldeirão o poder acumulado do Bispo Macedo e sua Igreja Universal com a TV Record. O desvínculo da radiofusão do poder político e religioso são questões urgentes em nossa sociedade.

Patrocínio estatal – O Estado é o principal patrocinador da radiofusão, com anúncios, projetos especiais e empréstimos subsidiados. É preciso haver critério e transparência em relação ao investimento estatal, para impedir a barganha entre governos e os veículos de comunicação, e a consequente manipulação da opinião pública. Essas duas primeiras questões implicam, de saída, o governo e o Congresso, o que torna o desafio mais difícil. A única saída para isso seria uma grande mobilização popular, como no caso do ficha-limpa.

Concentração – O cruzamento das mídias permite que grupos detentores de grandes conglomerados de comunicação  ampliem de forma desproporcional sua presença midiática, com TV, rádio, revista, jornal, internet. É preciso garantir igualdade de condições para quem faz comunicação social no país. O sistema de produção brasileiro permite que uma rede de televisão produza e distribua todo o seu conteúdo, dominando a cadeia produtiva por completo. Precisamos ampliar a presença da produção independente, sobretudo regional, na programação dos veículos de massa.

Diversidade – O combate à cultura homogênea global, difundida pelos seis grandes conglomerados de mídia (as chamadas majors), que congregam estúdios de Hollywood, cadeias de TV internecionais, jornais, rádios, revistas, indústria fonogrática e de entretenimento, infraestrutura de cabo, satélite e portais de Internet, é uma das questões mais importantes das sociedades contemporâneas. Fortalecendo as indústrias culturais locais, como a Rede Globo e a Record, fortalecemos a cultura nacional. Mas temos de levar em conta que isso resultaria em distúrbios internos relacionados à diversidade regional, como já vimos. Por outro lado, a defesa do nacional frente ao global é uma questão delicada e pode ameaçar a própria diversidade.

Convergência – Os conteúdos culturais ocupam as mais diferentes telas, redes e suportes, de TVs a aparelhos móveis individuais, como tablets e smartphones. As empresas de telefonia já são consideradas grandes agentes difusores de conteúdo, embora sua participação nesse mercado não esteja regulmentada. O desafio aqui é reunir mercados totalmente diferentes em torno de uma regulação única, já que estamos falando de setores tão diferentes quanto TV aberta (analógica e digital), por assinatura, telefonia e Internet, que pode ser alcançada por cabo, eletricidade e por ondas eletromagnéticas – cada infraestrutura com sua regulação própria, que não prevê a difusão de conteúdos.

Propriedade Intelectual – A cultura da convergência é caracterizada pelo livre compartilhamento de conteúdos digitais, um descumprimento tácito e consentido (até mesmo pela falta de meios) da atual legislação de direito autoral, que precisa encontrar um equilíbrio entre a cultura livre e a subsistência de artistas e provedores de conteúdo. Para termos uma ideia da complexidade deste assunto, chegamos em um estágio em que o próprio conceito de autor precisa ser rediscutido e talvez revisto, diante das milhares de possibilidades de cocriação geradas pela enorme transformação do mundo digital.

Neutralidade - Por mais que o ambiente da Internet seja regulamentado aqui ou acolá (países como França e Espanha recrudeceram suas legislações cibernéticas), torna-se impossível controlar e regular os conteúdos provenientes dos mais diversos pontos de emissão e recepção digitais. Além de possibilitar maior diversidade de temas e conteúdos, devemos contar com a forte presença dos conglomerados de mídia, previamente estabelecidos no imaginário público, devido ao cruzamento e concentração, como já vimos. O poderio político, através de lobbies e rede de influências, presentes na política internacional e no ambiente político interno, não pode ser ignorado (vide matéria de Carlos Minuano sobre o avanço da Lei Azeredo no Congresso).

Cidadania – Há uma sobreposição entre a democracia representativa, que elege representantes para o Congresso e para o Executivo, e a democracia direta, que rege a participação de cidadãos comuns em Conferências de comunicação e cultura, e também em consultas públicas. A pauta da democratização dos meios foi construída nesses ambientes, com forte presença estatal, não somente na pauta e direcionamento dos temas, mas também na metodologia e no processo de conclusão e definição dos relatórios finais, o que coloca em xeque a legitimidade desse que pode ser o grande instrumento de participação democrática e cidadã no país. A regulamentação da mídia também passa por um maior distanciamento do governo federal nesse processo.

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