terça-feira, 26 de julho de 2011

Frangos

Retirado do Recordar, Repetir e Elaborar em 26/07/2011 do endereço:

http://rre.opsblog.org/2011/07/24/frangos/

À meia-noite e meia comecei a fazer meu próprio caldo de frango, que ficou pronto às quatro e meia, deixando a casa toda cheirando a sustância. Menos de um ano atrás eu não sabia o que era isso, então não custa lembrar que ninguém tem a obrigação de saber: o caldo de frango a que me refiro não é uma sopinha rala, mas o quadradinho da Knorr, só que em formato líquido. Serve para usar na preparação de sopas, risotos e, espero, outros pratos que com o tempo descobrirei.

É um momento importante na vida de uma criança urbana quando ela descobre que frutas, legumes e verduras não nascem nas prateleiras do mercado, mas vêm da terra – e que terra não é aquela sujeirinha debaixo do taco solto do assoalho, mas é onde a gente pisa quando vai na fazenda. É um momento igualmente importante na vida da criança, mesmo quando a criança já tem quase trinta anos, quando ela descobre que as coisas feitas pela knorr não foram inventadas pela knorr, mas são apenas versões industrializadas de receitas que as pessoas costumavam fazer em suas próprias casas.

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Teve um post em que o Alex fez uma lista bonita das coisas que para ele significavam “ser zen” (e agora repita comigo bem rápido, cinquenta vezes: serzenserzenserzenserzenserzen – quantas vezes você conseguiu? Eu parei na sétima ou oitava, nunca vou me candidatar a deputada ou pastora de igreja), e que incluíam, por exemplo, manter a postura ereta e fazer uma coisa de cada vez. Eu também tenho umas listas assim com as coisas de adulto que me deixam tranquila e feliz, mas não poderia nunca chamá-las de zen, porque se eu enfiasse a zenitude nesta história, em 5, 4, 3… nego viria aqui para me ensinar “mas o zen não tem nada a ver com felicidade!”, e nego estaria certo. Então melhor eu me ater à felicidade e à tranquilidade subjacentes a estas coisas, deixando o zen de lado. Aliás, deixando a felicidade e a tranquilidade também. Porque difícil mesmo é explicar a adultícia. É conseguir comunicar e compreender um tipo de adulta que não é adulta no sentido revista feminina de ser, da mulher bonita, simpática, elegante, bem vestida, prendada, alta executiva e que ainda é um furacão na cama. Nem tampouco no sentido revista de negócios de ser, do homem (porque aí é sempre um homem) empreendedor que exala expertise pelos poros e agrega valor a cada meeting e até mesmo a cada coffee-break de que participa. Porque são esses os modelos de adultícia com que cresci, minha avó sendo a própria Marie Claire e minha tia sendo a Senhora Exame. E o meu, o meu tipo de adultícia, de – vamos fingir cultura, gente, façamos um esforcinho aí – de ser-no-mundo, ainda me parece difícil de explicar. Mas é fácil de exemplificar. Quando sou adulta, por exemplo, eu faço meu próprio caldo de frango.

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E, por falar em frango, existe coisa mais adulta do que assar um frango no domingo?

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A coisa de que eu mais gostava no domingo é quando vinha gentarada na casa da minha avó. Naquela época, e isso eu lamento muitíssimo, eu prezava mais a companhia das pessoas do que hoje, e minha alegria era servir aperitivos para as parentadas que começavam chegar às dez da manhã para irem embora às dez da noite. Os aperitivos eram sempre castanha de caju e amendoim, e por mais que meu marido não se canse de repetir que “meu amor, o que você acha que é aperitivo na verdade é petisco, petisco a gente come e aperitivo a gente bebe”, para mim o aperitivo sempre será o amendoim que abre o paladar para o frango assado que está por vir.

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Meu frango assado de hoje ficou maomeno, fiz uma marinada com suco de laranja, alecrim, azeite e shoyu e o medo de salgar a comida impediu-me de pôr um salzinho a mais na hora de colocar as quatro sobrecoxas no forno. É sempre uma derrrrota ter de acrescentar sal à comida já pronta, e eu mordo os dentes, a língua e a alma quando alguém me vem com a história – principalmente quando o alguém é meu próprio subconsciente – de que sal é sempre melhor faltar do que sobrar, porque nunca se salva uma comida salgada etc. É verdade, mas e daí? A verdade, em verdade vos digo, não consola. A falta de sal na comida nunca me parece um atestado de prudência e sim um testemunho da minha falta de coragem, da minha pusilanimidade, do meu medo de jogar dez reais de frango fora.

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Talvez eu esteja enganada e seja capaz de descrever minha própria e parca adultícia em termos outros que os das revistas da Abril. Para além dos frangos, minha adultícia é fazer o que precisa ser feito a despeito do medo, dos erros e das imperfeições. Das hesitações. É errar o ponto do sal e escrever uma frase que soa mal, mas ao fim e ao cabo ter um frango para almoçar e uma tradução para entregar, o estômago cheio e (eu adoraria dizer “a conta bancária idem”, mas isso ainda não está rolando), bem, é só isso aí mesmo.

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Vou passar uns dias em Buenos Aires daqui a pouco e, claro, ¡bife de chorizo!, ¡dulce de leche!, ¡libros de Saer que no encuentro en San Pablo!, ¡ropas de cuero!, ¡Andrés Beeusawert! y todo eso (o todo eso, no caso, sendo a possibilidade de passar dias agarrada ao meu marido numa terra que adoramos), mas, sabe. A melhor parte vai ser voltar. Para meus frangos, traduções e para a vida que levo e levamos aqui em San Pablo mesmo.

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E dessa vez, espero trazer para casa o avental que ilustra o post.

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