quarta-feira, 4 de julho de 2012

Arquétipo do gestor cultural a serviço do que realmente interessa

Retirado do Cultura e Mercado em 04/07/12 do endereço:

http://www.culturaemercado.com.br/pontos-de-vista/arquetipo-do-gestor-cultural-a-servico-do-que-realmente-interessa/

Por Kluk Neto

Diante da proposição de uma reflexão sobre os temas da institucionalidade na cultura e da objetividade versus subjetividade fui, quase que de forma natural, compelido a retomar alguns questionamentos acerca das demandas que se impõem àqueles que se debruçam sobre a tarefa de dedicar-se à gestão cultural, o que me levou a traçar, por espelhamento com as tais demandas, o perfil do gestor cultural idealmente plasmado para os problemas dos nossos dias.

Do que subjaz das diversas discussões contemporâneas no campo da gestão cultural, me parece que os “gestores” forçosamente devem estar preparados hoje para coadunar questões práticas e objetivas no seu dia a dia dentro dos aparatos institucionais e burocráticos das mais diversas instituições culturais, lidar com atividades de gestão que emprestam conhecimentos dos ramos da administração e até da tão criticada quanto em voga, “economia criativa”, com seus modos de mensuração, avaliação e prestação de contas e, ao mesmo tempo, manter-se com a alma no horizonte e nos meandros do entendimento da humanidade premente e dos domínios da subjetividade inerente a toda manifestação criativa, cultural, artística, que é o objeto primeiro, a matéria prima e ao mesmo tempo o produto final que dá sentido a sua “profissão”.

Permeia ainda toda a discussão, a atenção à diversidade, aos direitos culturais, à “democratização do acesso”, ao respeito às liberdades e junto com tudo isso os movimentos e possibilidades num mundo em permanente e acelerada produção de inovação tecnológica que introduz novas dinâmicas ao processo de conexão das pessoas, e da cultura global, local e “glocal”, para usar um jargão muito celebrado recentemente. No Brasil, o gestor cultural nas esferas mais altas da administração pública irá defrontar-se ainda com embates levados a cabo por grupos econômicos organizados, lutando por interesses de mercado ao lado de grupos que embora política e ideologicamente contundentes, apresentam-se muitas vezes, alienados dos processos e das relações de mercado e economicamente desorganizados. Além dos tópicos acima listados, que compõem, mas nem de longe esgotam a agenda da hora para o gestor cultural, adicionam-se as questões da sustentabilidade ambiental que como questão humana urgente dos nossos dias, impacta e é impactada pela produção cultural e empresta dos criativos, armas preciosas para advogar pela causa.

O gestor cultural será também forçosamente levado a enfrentar as questões objetivas relacionadas aos orçamentos, à definição de prioridades e por isso mesmo escolhas de privilegiados, responsabilizando-se e justificando as suas ações a partir de convicções próprias que serão postas à prova pelo questionamento e prestação de contas ao ambiente político e institucional que o rodeia, que o sustenta e a ele delega as funções decisórias no seu campo de atuação diário.

Ao manter a consciência ancorada na percepção de que trabalhar com cultura é lidar com o amálgama da alma humana e as suas necessidades, expressões, intercomunicação e vivências individuais e coletivas em todas as dimensões possíveis (desde as claramente imaginadas até as ainda não exploradas) a imagem que me parece feliz para o arquétipo do gestor cultural contemporâneo é a daquele que consegue colocar todo o aparato objetivo do mundo burocrático e institucional a serviço da parte subjetiva, que é o que, no fundo, realmente interessa.  Usarei aqui, a expressão “para o progresso das almas”.

Dominar as ferramentas, as artimanhas, a linguagem e as forças do mundo matematizado, normatizado e institucionalizado – que é produto da sociedade moderna e que abarca, é claro, o mundo da cultura – torna-se essencial para fazer com que todo esse aparato não se transforme em elemento limitador e até perversor da dinâmica de liberdade e criação de ambientes propícios ao livre acesso a uma vida cultural (a mais plena possível).

Ao analisar as organizações culturais, que são as células onde os gestores culturais atuam por excelência, chamam a atenção algumas características apontadas pelo Professor Alfons Martinell -  com larga experiência em gestão cultural na Espanha e professor da Universitat de Girona -  e que evidenciam quanto o ambiente cultural pode estar condicionado pela institucionalidade instalada.

Segundo Martinell, uma das características das organizações é a existência de uma explícita finalidade, que definida numa organização cultural, pode muito fortemente condicionar a sua estrutura, assim como o seu modelo de gestão.

Muitas vezes as organizações culturais encontram-se, por sua finalidade, aprisionadas num modelo formatado, o que fatalmente gera dificuldades para se adaptar a condições do presente ou se preparar para o futuro.

Martinell aponta ainda uma característica muito singular quando nos diz que as organizações culturais são “intensivas em personalidade”. Muitas vezes uma personalidade do mundo cultural ou artístico pode imprimir uma marca pessoal muito forte e condicionadora da atuação da organização, sufocando movimentos de renovação ou cerceando o desenvolvimento de flexibilidades administrativas. Não raro, personalidades de excelência no campo expressivo criativo assumem funções que não coincidem com a eficácia de gestão requerida pelas organizações. Com isso, contrariando as máximas recomendadas pelos teóricos do mundo dos negócios “for profit”, no negócio da gestão cultural, especialmente os vinculados às instituições governamentais e “non-profit”, muitas vezes “o gosto” do patrão influencia o que se oferece ao freguês.

Trabalhar com as limitações atuais dos ambientes, jurídico-institucionais, políticos, ideológicos e econômicos, assim como ser capaz de trabalhar para influenciar e modificá-los quando necessário, amparado por conhecimento técnico e proposições intelectuais claras sobre o caminho proposto em matéria de política cultural e gestão desta política, afigura-se como fundamental para o êxito no estabelecimento de condições de um efetivo campo de liberdade: na criação e na vivência humana no campo da cultura e da arte.

Ao mesmo tempo, não apenas uma compreensão, mas um firme comprometimento com o trabalho que coloca o desenvolvimento humano em primeiro plano nas questões culturais me parece fundamental para que essas condições sejam criadas e sustentadas.

Atuar na concretude, conhecendo a objetividade, não só da produção cultural e artística que se faz mesmo física, material e visceral tantas vezes para atingir o espírito, como também a aridez dos diversos campos institucionais que influenciam o fazer cultural, torna-se imprescindível para permitir que o mundo de significados, a arte e a vida cultural dos indivíduos, o que realmente interessa, possa ser exercida da forma mais rica e plena possível.

Referências Bibliográficas:

BARBIERI, Nicolás; PARTAL, Adriana; MERINO, Eva. (2011). Nuevas políticas, nuevas miradas y metodologías de evaluación. ¿Cómo evaluar el retorno social de las políticas culturales? In Revista Papers nº. 96/2. Barcelona: Universitat Autònoma de Barcelona.

MARTINELL, Alfons. (s/d). Teoría de las organizaciones: Características de las organizaciones culturales (PID_00147869). Girona: Universitat de Girona.

TEIXEIRA COELHO, J. (2012). A condição da cultura. São Paulo: Observatório Itaú Cultural, mimeo.

TEIXEIRA COELHO, J. (2012). Metáforas da Cultura. São Paulo: Observatório Itaú Cultural, mimeo.

Kluk Neto - Economista, é gestor do Programa Fábricas de Cultura pela Poiesis – Organização Social de Cultura e membro do Conselho do Instituto Pensarte. Para mais artigos deste autor clique aqui.

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