quinta-feira, 29 de março de 2012

Memória gráfica da cachaça

Enviado por Daniella Salles.

Retirado do site da Revista de História da Biblioteca Nacional em 29/03/12 do endereço:

http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/memoria-grafica-da-cachaca

Rótulos são caso à parte no design brasileiro

Por Egeu Laus

O termo cachaça aplicado à cana aparece pela primeira vez em um texto do padre jesuíta André João Antonil (1649-1716) em seu livro “Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e Minas”, publicado em 1711. Ele se refere à palavra como a “espuma grossa que se tira das caldeiras na primeira fervura do caldo de cana durante o processo de evaporação”. Cem anos depois do livro de Antonil, a cachaça de alambique já frequentava as mesas imperiais brasileiras sendo citada pelo botânico e viajante Auguste de Saint-Hilaire em 1819: “A cachaça é a aguardente do país”. No entanto o engarrafamento e a rotulagem da cachaça no Brasil é coisa relativamente recente. Saliente-se que é somente na segunda metade do século XIX que a impressão sobre papel passa a acontecer de maneira efetiva com a liberação da produção gráfica no Brasil após a chegada da família real portuguesa em 1808, criando a Imprensa Régia, três séculos e meio depois da invenção dos tipos móveis por Gutemberg. Em alguns países da América Latina a impressão já se realizava desde o início de 1700, portanto 100 anos antes, destacando-se inclusive alguns periódicos como por exemplo os jornais "Gaceta da Guatemala" e "Primicias de la cultura de Quito" (Equador) fundados em 1729 e a "Gaceta de Lima", no Peru, fundada em 1743.

Embora a cana-de-açúcar tivesse se desenvolvido no regime de “plantation” em grandes latifúndios, a produção da cachaça engarrafada sempre se caracterizou por pequenos produtores, em seus alambiques, para consumo localizado. Essa característica se manteve do século XIX até hoje, ocasionando um fenômeno sui generis no mundo: a quantidade fenomenal de marcas de cachaça espalhadas por todo o território brasileiro. Estima-se que existam mais de 30 mil produtores atualmente.

A produção gráfica dos rótulos é um caso à parte na história do design brasileiro: não são poucos os rótulos desenhados pelo próprio “alambiqueiro”, produtor da cachaça. O rótulo da cachaça se manteve com características artesanais até o final do século 20 constituindo-se num dos grandes exemplos do que conhecemos como design vernacular. (Alguns exemplares de rótulos de cachaça dos anos 1940 e uma grande produção dos anos de 1950 e 1960 podem ser vistos na exposição “Caprichosamente engarrafado: rótulos de cachaça”, durante todo o mês de fevereiro, março e até 10 de abril, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo).

Uma outra característica do rótulo, esta compartilhada com uma vasta produção de efêmeros e embalagens no Brasil, é a impressão litográfica, mantida em grande atividade até pelo menos os anos 50/60 do século XX. A litografia, inventada por Aloys Senefelder em 1796 na Alemanha chega ao Brasil em 1825 com a contratação pelo imperador de um litógrafo para o Real Arquivo Militar.

Utilizando pedras calcárias como matriz de impressão a técnica conhecida como litografia (no método básico desenha-se na pedra com um lápis gorduroso que atrai a tinta) se espalhou pela corte com grande rapidez e em pouco tempo mais de 250 litógrafos trabalhavam somente no Rio de Janeiro produzindo encomendas variadas, primeiro em preto e branco e depois em cores, como estampas artísticas, mapas, cartões, marcas comerciais, cartazes, e, a partir de 1870, as revistas ilustradas extremamente populares e com amplas tiragens.

Na virada para o século XX praticamente toda a produção de embalagens comerciais brasileiras de papel utilizava a técnica litográfica. A impressão dos rótulos de cachaça, em tiragens altas para baratear o preço unitário de custo, se expandiu rapidamente em casas impressoras litográficas por todo o Brasil criando um estilo iconográfico inconfundível, principalmente a partir do anos 1930.

Embora os temas retratados, nomes e marcas das cachaças sejam variadíssimos as casas litográficas trabalhando com poucas tintas, dentre as quais se destacavam basicamente o preto, o amarelo, o vermelho e um azul claro, acabaram construindo, talvez por necessidade de uma impressão rápida com poucas sobreposições policrômicas, um panorama visual em que quase sempre se sobressai o amarelo como fundo geral – construindo com o azul o verde das paisagens e da cana de açúcar – e o vermelho e o preto na construção tipográfica. O que impressiona é que uma gama tão limitada de cores tenha proporcionado um universo tão diverso de imagens.

Os rótulos da nossa cachaça tem sido objeto de alguma pesquisa nos últimos anos, por conta do vivo interesse despertado pelos pesquisadores e historiadores da nova história material focada nos temas da vida cotidiana dentro do contexto das histórias da vida privada. Pelo menos sete grandes temas tem sido abordados na construção dos rótulos de cachaça e sua marcas: Acontecimentos e Personagens – não há grande acontecimento ou personagem que não tenha sido homenageado em alguma marca de cachaça (Fundação de Brasília, Copa do Mundo, Segunda Guerra, Bomba Atômica, Pelé, Pixinguinha, etc.); Indígenas – as marcas retratando índios e índias (as vezes com nomes completamente disparatados como “Bossa Nova”) copiados de velhas gravuras e do acervo iconográfico acadêmico, é muito grande; Humor e Autorreferência – a facilidade com que a cachaça brinca com suas próprias mazelas (“Calçada lisa” é o nome de uma delas, “Capote de pobre” outra) ao lado de nomes jocosos de duplo sentido para dezenas de marcas (Perseguida, Esquecida, Juízo, Providência) faz da cachaça um caso praticamente único no marketing internacional. Tipografia – os rótulo all type são uma presença bastante forte em todo o Brasil com uma variedade de tipos pequena com o uso do antigo normógrafo e linotipos porém com arranjos tipográficos bem diversificados com lettering às vezes desenhados à mão; Bichos e Aves – a fauna brasileira, até mesmo a mitológica, faz parte ativa da iconografia dos rótulos. São dezenas de nomes, alguns regionais, construindo um amplo painel da nossa fauna rural, integrante da vida cotidiana; Paisagens e Lugares –cenas do mundo rural na colheita e transporte da cana se misturam com homenagens às cidades, às vezes descrevendo graficamente o local dos alambiques e os destaques geográficos; Pin-Ups – A cachaça associada à conotações eróticas é uma constante, como de resto em todo o universo as bebids alcoólicas. As pin-ups do cinema e das revistas são uma referência permanente para as marcas e seus rótulos.

A preservação dos rótulos de cachaça e a própria historia da bebida são mantidos por meio da dedicação dos colecionadores particulares através dos anos. Espalhados pelo Brasil mantêm coleções diversas com quantidades variadas de exemplares indo de centenas a perto de 10 mil rótulos.  De forma mais organizada temos a Fundação Joaquim Nabuco, Fundaj em Recife, PE, que abriga no seu Centro de Estudos da História Brasileira a coleção de rótulos que era mantida pelo IAA – Instituto do Açúcar e do Álcool, no Rio de Janeiro. A Fundaj comprou também a Coleção de Almirante composta por 4 mil rótulos. Esta coleção teve seu início, ainda na década de 1950 pelo pesquisador, cantor, compositor e radialista Almirante (Henrique Foréis Domingues) que, em seu programa de rádio convidava os ouvintes de todo o Brasil a lhe enviar rótulos. O acervo da Fundaj é valiosíssimo por conter grande variedade de rótulos produzidos por impressão litográfica nos anos de 1940, 50 e 60.

Um universo para a pesquisa da nossa cultura material

O design contemporâneo tem aprofundado seu olhar para a nossa cultura material popular como reação à uniformidade das estéticas ocidentais transnacionais.

A estética dos rótulos de cachaça trazem em seu bojo todas as influências, ao mesmo tempo: indo do barroco e o rococó para a pop art e o psicodelismo. São um excelente material para os estudos de experimentação da colagem moderna, iniciada nas artes plásticas nas primeiras décadas do século XX e reforçada na música popular dos anos 60, e que, com o advento das ferramentas digitais tem proporcionado uma extrema facilidade nas apropriações, citações, mashups, misturas e inclusões resgatando e utilizando formas e imagens populares, e construindo uma iconografia pós-moderna de grande impacto visual no design contemporâneo. Recentemente a cachaça Maria Izabel produzida em Paraty teve seu rótulo desenhado pelo ilustrador norteamericano Jeff Fisher utilizando elementos vernaculares brasileiros.

Se o vernacular é aquilo que se construía “à margem” do conhecimento erudito os rótulos de cachaça contribuem, no mundo globalizado, para um olhar ao local e ao regional, compreendendo que o erudito e o popular são faces da mesma cultura.

Saiba mais:

Exposição:

Caprichosamente engarrafado: rótulos de cachaça

Data de abertura - 9 de fevereiro às 20 horas

Período - 10 de fevereiro a 10 de abril

Instituto Tomie Ohtake

Av. Faria Lima 201 (entrada pela Rua Coropes)

Pinheiros – Tel 11  2245 1900

Terça a domingo, das 11 às 20 horas – Entrada franca

Para pesquisa:

http://rotulosdecachaca.blogspot.com/

(do blogueiro Roberto Carlos Morais Santiago)

http://www.cnn.folderpark.net/

(organizado por um holandês Rob Timmers)

Para visitar:

O Museu da Cachaça de Pernambuco em Lagoa do Carro (próxima a Carpina, 60 km de Recife, PE)

http://www.museudacachaca.com.br

Museu da Cachaca do Ceará (mantido pela Ypióca)

O Museu da Cachaça funciona das 8:30 às 17:00, de terça a domingo em Maranguape a 25 km de Fortaleza. A entrada custa 8 reais, a inteira, e 4 reais, a meia. Para maiores informações ligue para (85) 3216.8888 (Escritório Central). www.ypioca.com.br/port/museu/museu.htm

O acervo do Centro de Estudos da História Brasileira da Fundaj

Fundação Joaquim Nabuco  – Av. Dezessete de Agosto, 2187 | Casa Forte 52061-540 | Recife - PE Fone: (81) 3073-6363/Fax: (81) 3073-6203

http://www.fundaj.gov.br

Museu do Cachaça de Paty do Alferes, RJ

Rua Nova Mantiquira 227 – Mantiquira

Paty do Alferes – R.J.

Tel.: (24) 2485.1475

www.muca.com.br

     

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