domingo, 31 de janeiro de 2010

Cézanne e a blogosfera

 

MAURÍCIO CALEIRO - Jornalista e cineasta

Meses atrás, fui com uma amiga a uma exposição no MASP, o belo museu projetado por Lina Bo Bardi que conta com o maior vão ao livre da América Latina, cuja frente dá para a Av. Paulista, o local de que mais gosto em São Paulo e o que melhor encarna um certo espírito dinâmico e cosmopolita da cidade, hoje em franca decadência.
Era uma exposição que reunia alguns dos principais pintores do Ocidente do período 1860-1960, com destaque para os modernistas franceses do final do século XIX, como Degas, Monet, Manet e Renoir.
Após examinar detidamente, com ar de interrogação, um quadro de Cézanne, ela virou-se para mim e disse, resoluta, algo como:

“- Esse cara não pinta nada. Isso é pura enganação”.

Achei muito engraçado e limitei-me a sorrir um riso solto. Estava uma tarde maravihosa e meu maior interesse era que a noite fosse ainda melhor. Ela era particularmente sensível em relação a sua formação cultural e se há um papel que eu detesto fazer, nesses casos, é o de professor fora das salas de aula. Deixei rolar.
Mesmo porque, se proferida sem contextualização alguma e a partir dos critérios estéticos do presente, a observação dela faz sentido. Observemos o quadro de Cézanne reproduzido acima - da sérieChâteau Noir, pintada entre 1904 e 1906 (ano de sua morte) e considerado um marco influencial na transição da arte novecentista para o modernismo radical do século XX: por um lado, ele é claramente insatisfatório se avaliado a partir de uma perspectiva figurativa clássica, pós-renascentista (pois é evidente que, intencionalmente, a paisagem retratada não reproduz – apenas emula - a paisagem observada); por outro lado, ele não atinge o grau de ambivalência estética nem a hipertrofia de sentidos do alto modernismo.
Daí que para entender a grandeza da arte de Cézanne talvez seja preciso – ou recomendável - não apenas contextualizá-la em seu tempo e em relação à história da arte - em termos de ruptura de parâmetros de representação e de topos estético -, mas analisá-la a partir de seus desdobramentos últimos para a arte moderna: é a partir do contato com algumas das obras máximas de um certo modernismo pictórico - digamos, com o Picasso de Les mademoiselles de d’Avignon – que, retrospectivamente, fica mais “fácil” enxergar-lhe a excelência.
A escolha de uma obra de Picasso para sublinhar, retrospectivamente, a influência inovadora exercida por Cézanne - num processo que o escritor argentino Jorge Luis Borges define como “a capacidade de influenciar seus predecessores” - não se deve ao acaso: o pintor andaluz explicitou diversas vezes tal influência, chegando a declarar, como se falasse em nome dos modernistas do século XX, que "Cézanne é o mestre de todos nós".
Por que me lembrei desse episódio menor e teço tais comentários? Porque eles se relacionam com uma questão que me parece premente na blogosfera. Uma novidade muito positiva que ela trouxe às relações comunicacionais é a democratização das opiniões: não são, no mais das vezes, títulos acadêmicos, status social ou posição profissional que determinam a legitimidade das opiniões do blogueiro (e dos comentaristas), mas o modo como uma comunidade de leitores – variável em número e perfis - com elas interage.
Esse processo, no entanto, não está livre de certas vicissitudes. Uma das maiores, na minha opinião, é justamente uma certa tendência a defender opiniões que, mesmo se bem-formuladas e coerentes de um ponto de vista lógico, já foram exaustivamente debatidas por pensadores e teóricos, muitas vezes com um grau de elaboração muito mais desenvolvido.
Dia desses, em meio a um acalorado debate político no Twitter, o amigo @bruno_pinheiro – o médico mais intelectualizado que conheço – soltou um comentário lacônico, mas que me pareceu precioso: “Acho que as pessoas deveriam ler Gramsci”. Sem ser deselegante ou confrontar diretamente ninguém, ele tornou evidente o absurdo de se pretender discutir tal tema em profundidade sem conhecer sequer os conceitos básicos da teoria política.
Espero que eu esteja errado, mas um de meus receios é que a afluência cada vez maior de blogueiros com baixa faixa etária numa atividade já característicamente dominada por jovens – portanto, com menor formação cultural, possivelmente mais refratários à leitura e há muito acostumados, segundo Eric Hobsbawn, a viver num “eterno presente” – possa vir a agravar o problema.
Pois, idealmente, à democratização da opinião não deveria corresponder a demonização do conhecimento acumulativo e o fastio com textos volumosos, como às vezes parece acontecer. Há certos conhecimentos que só os livros - e o tempo, concentração e reflexão que demandam - trazem. Negligenciá-los em prol de uma produção tão profícua quanto pouco embasada e de debates circunscritos ao aqui-agora é aumentar o risco que um dia Cézanne seja classificado como um enganador e a maioria aquiesça.

* retirado do blog cinema e outras artes em 31/01/2010:

http://cinemaeoutrasartes.blogspot.com/2010/01/cezanne-e-blogosfera.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente