quinta-feira, 9 de junho de 2011

uns títulos do PATATIVA’S

Publicado originalmente por Cesar Cardoso no seu PATATIVA’S e retirado em 09/06/2011 do endereço:

http://cesarcar.blogspot.com/2011/06/te-dou-minha-palavra.html

TE DOU MINHA PALAVRA

A ORQUÍDEA TATUADA, DE PEDRO VELUDO

Pedro Veludo está sempre viajando. Se não é pelas terras do planeta, é pelas palavras desse mundo de papel e de babel. Tanto num quanto noutro, Pedro não faz turismo, ele procura conhecer os lugares por onde passa e segue pensando neles quando os transforma em texto. É o que ele faz em seu novo livro, A ORQUÍDEA TATUADA, com registros, impressões de viagem, crônicas, contos e pequenos ensaios sobre suas mais recentes andanças. Com vocês mais um pouco da prosa de Pedro.

O ÚLTIMO ABRAÇO

Porto, Portugal.

Aos seis anos fui com minha mãe viver em outro país e nunca mais vi meu pai que, meia dúzia de anos mais tarde, veio a falecer.

Quase trinta anos depois voltei à sua cidade, em busca do paradeiro de um tio, irmão dele. Depois de muito procurar e quase desistir, consegui o endereço da repartição onde ele trabalhava.

Entrei. Olhei um a um os funcionários, avancei sem hesitações e parei em frente à mesa dele.

- Tio, eu sou o filho mais velho de seu irmão Henrique.

Por um instante ele me encarou e, aparentemente sem surpresa, baixou o rosto para a pequena gaveta à direita, na sua mesa, de onde retirou um envelope:

- Estava à tua espera. Isto é para ti.

Eram duas fotos, a certidão de nascimento e a carteira de identidade de meu pai.

Fechou a gaveta, e me olhou fixo. Depois se levantou devagar, deu a volta à mesa e me abraçou. Correspondi ao abraço e assim ficamos, em silêncio, durante algum tempo. Aos poucos o silêncio estendeu-se a toda a repartição. Os funcionários deslizavam na ponta dos pés nos olhando de soslaio, à distância conveniente. Em absoluto silêncio, como se não quisessem perturbar o que talvez adivinhassem ser o último abraço de meu pai.

PORTO QUE É

Torre dos Clérigos, Porto, Portugal.

Subo pela segunda vez à Torre dos Clérigos, no Porto.

A primeira foi há muitos anos com meu pai. Lá, no andar mais alto, no sino maior, ele escreveu, em vermelho, os nossos nomes. Escreveu... ou disseram-me que ele escreveu, ou sonhei que ele escreveu... ou quis muito que ele tivesse escrito.

Porto que me lembra pai, lembra frio e broa. Lembra cozinha da avó com cafeteira de cevada ao fogo.

Porto, meu “pequeno” Porto, da Praça dos Poveiros e Jardim de São Lázaro, onde eu prendia folhas secas apanhadas do chão, com palitos de fósforos, formando coroas que punha na cabeça e pendurava ao pescoço, desfilando feito herói de mim mesmo.

Porto que lembra pontes, as quais, ao atravessá-las, entro em recantos de mim que de tão escondidos e escuros não consigo ver se as lembranças lá guardadas são ou não acontecidas: se me foram contadas ou não, se as imaginei, se as misturei com outras ou são antigas fotos que não sei onde estão, se são frases ouvidas de não sei quem, se sonhos, se pensamentos...

Porto que o passar por tuas ruas me traz desassossego, como se a qualquer momento fosse encontrar uma marca, um sinal de mim, ou como se eu fosse me encontrar ao dobrar uma esquina.

Porto que lembra o que não sei saber se foi.

PORTO QUE NÃO É MAIS

Porto, Portugal.

Volto ao Porto, à minha cidade que não é mais minha, de meu país que não é mais meu, à casa de meus avós que não são mais.

Na pequena, outrora enorme, sala, agora muda de gestos e vozes, montículos de serragem de cupim sob os móveis denunciam que há muito ela não é varrida. Separando-a do cubículo de cinco metros quadrados, onde eu mais sonhava que dormia, a porta de vitral colorido está intacta.

Tudo é silêncio.

Desço um degrau, o assoalho de madeira range, e estou na cozinha. Sento-me e passo os dedos pelo tampo da mesa, procurando em vão entre as marcas do tempo algum sinal, alguma lembrança. E me vem um gosto amargo ao peito do que eu não mais lembro, de minha memória atropelada. Da cafeteira sobre o fogão, chega-me o aroma forte a cevada.

Um ruído vindo do quarto de meus avós faz-me prender a respiração. É meu avô que amola a lâmina de barbear, friccionando-a pacientemente, de um lado e do outro, no interior de um copo. Ao seu lado, em silêncio, minha avó vigia a galinha que está prestes a pôr, num minúsculo galinheiro pendurado do lado de fora da janela. “Tem-se que tirar logo o ovo”, ela me dizia, “senão ela o come”...

Aproximo-me do quarto deles, pé ante pé: refletida no espelho do guarda roupa a imagem dele penteia os longos cabelos brancos dela. Na mesa de cabeceira, a gramática de língua francesa, que ele todas as noites por anos a fio estudava antes de dormir. Je suis, tu es, Il est, nous sommes... e adormecia antes da segunda pessoa do plural. “É preciso aprender francês”, ele me dizia.

Saio, como que saindo de mim próprio, com a impressão de que o tempo passou muito rápido.

Dou dois passos escada abaixo e olho para cima, a tempo de ver minha avó me acenando um adeus, abanando um lenço branco, como se ela estivesse longe.

Ou como se eu estivesse muito longe.

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