sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Forumdoc.bh – 15 anos singulares

Retirado do Questões Cinematográficas em 09/12/2011 do endereço:

http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-cinematograficas/geral/forumdoc.bh-15-anos-singulares

Por Eduardo Escorel

Singulares por quê? O que diferencia o forumdoc.bh dos outros festivais promovidos no País?

Correndo o risco de ser injusto, por nunca ter ido à maioria deles, o que chama atenção, em primeiro lugar, no Festival do filme documentário e etnográfico de Belo Horizonte é ser organizado por um grupo de entusiastas por cinema, heterodoxos por convicção, entrosados com a Universidade Federal de Minas Gerais, capazes de dosar na medida justa cinefilia, antropologia e filosofia, além de editar um catálogo sempre primoroso graficamente, trazendo textos inéditos em português como, neste ano, um dos primeiros estudos etnográficos de Jean Rouch, publicado em 1948. Isso para não mencionar a hospitalidade temperada de gentileza e simpatia mineiras.

Domingo passado (4/12) terminou o 15º forumdoc.bh, no qual foi possível ver, além dos concorrentes brasileiros e internacionais, uma variedade de filmes distribuídos em mostras não competitivas, dentre as quais três se destacam pelo ineditismo e originalidade de concepção: a do cinema dos povos originários Bolívia e México, a do animal e a câmera, e a restrospectiva Fernando Coni Campos.

Se os filmes em si, mesmo quando interessantes, às vezes decepcionam, há também surpresas imprevistas. Uma foram os vinte minutos finais de Viagem ao fim do mundo, dirigido por Fernando Campos em 1968. Acredito não ter visto o filme na época, e fiquei impressionado ao assistir, em pé, no fundo da sala lotada, as sequências finais, lamentando não ter chegado a tempo do início da sessão. Não tinha nenhuma lembrança dessa viagem em que a leitura por um passageiro do capítulo “O delírio” de Memórias Póstumas de Brás Cubas serve de pretexto para a visualização do seu imaginário e do de alguns de seus companheiros de voo.

Outra oportunidade excepcional foi ver O homem e sua jaula, filme inédito de Fernando Campos, proibido pela censura em 1969. Alinhando-se às tentativas de tratar de personagens masculinos de classe média – jornalistas, poetas, artistas e intelectuais em crise, feitas por Paulo César Saraceni, em O Desafio (1966), Glauber Rocha, em Terra em transe (1967), Julio Bressane, em Cara a cara (1967), e Maurício Gomes Leite, em Vida provisória (1968), Fernando Campos parece ter sido vítima da circunstância de só ter concluído o filme depois do Ato Institucional 5, de dezembro de 1968, época em que a censura se tornou mais drástica.

Embora seja possível identificar aqui e ali possíveis razões, em retrospecto a proibição de O homem e sua jaula justifica a perplexidade da pergunta feita por um espectador depois da projeção: por que foi censurado? Só mesmo o moralismo triunfante do tempo da ditadura encontraria pretexto para interditar esse filme sobre a crise existencial de um pintor.

Para se isolar do mundo, o personagem interpretado por Hugo Carvana pede para ser trancado no seu quarto, espaço fechado em que memória e imaginação podem aflorar. A solução dramática lembra a adotada dez anos depois por Alain Cavalier em Esta secretária eletrônica não grava recados, no qual o personagem pinta seu apartamento de preto, inclusive as janelas, até o desaparecimento da luz.

Com a publicação, em 2003, de Cinema: sonho e lucidez (Azougue editorial), livro que reúne escritos esparsos de Fernando Campos, além de depoimentos de amigos e colaboradores, teve início o resgate da memória de um cineasta original, à frente do seu tempo, injustamente esquecido. A exibição de seus filmes pelo forumdoc.bh foi um novo e significativo passo nessa direção.

Ainda no forumdoc.bh, na mostra cinema dos povos originários Bolívia e México, foi possível ver A nação clandestina (1989), de Jorge Sanjinés, e Y el rio sigue corriendo (2010), dirigido por Carlos Pérez Rojas.

Jorge Sanjinés causa estranheza ao se propor, desde o primeiro plano – um elaborado movimento de grua –, a reconstituir um grande espetáculo, nos moldes do cinema dominante, para tratar da identidade cultural boliviana.

Carlos Pérez Rojas, por sua vez, acompanha, em 2003, com excesso de sobriedade e carência de inventividade, o movimento de comunidades para impedir a construção da hidroelétrica de “La Parota” que inundaria uma região ao sul de Acapulco.

É estranha a sensação de ver reproduzidas, como se já não houvesse experiências anteriores semelhantes, algumas das piores características do cinema militante – a dos filmes que não estão à altura das boas causas que defendem.

Ninguém melhor que o próprio forumdoc.bh para apresentar seu projeto. O início do belo texto de abertura do catálogo deste anos é eloquente nesse sentido:

“1.  O forumdoc.bh foi um projeto coletivo construído na dúvida e na incerteza. Imprecisão, resistência, resíduo. Quando o espetacular ensaiava tudo dominar, quando os donos do capital ameaçavam tomar conta de vez dos humanos e da natureza, da política, da televisão, do cinema de ‘bilheteria’, da ciência, da arte de galeria, da programação genética, da reportagem televisiva, do jornalismo, dos realities-shows, de um tipo de festival com pura cara de publicidade, antes que tudo acabasse no roteiro pré-estabelecido pelas elites, antes que o mundo acabasse ou que ele se tornasse único e sem diferença, neste momento, foi preciso sonhar, e, paradoxalmente, foi preciso inventar algo menor, periférico, que apostasse na continuação do mundo com o cinema, que rompesse as fronteiras entre a arte e a vida, a ficção e o documentário, e, ainda, que fosse livre e gratuito. Deste sonho nasceu um festival de cinema que não se realiza sob a lógica do ‘uno’ maldito do Estado ocidental, que não é feito por uma só pessoa ou cabeça pensante, mas por muitos, novos e velhos; [...]”

Esse texto completo e a íntegra do catálogo estão disponíveis em http://www.forumdoc.org.br/2011/catalogo-2011.

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