segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Sapatos, cachorros e liberdade de expressão

Retirado do Questões Cinematográficas em 23/01/2012 do endereço:

http://origin.revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-cinematograficas/geral/sapatos-cachorros-e-liberdade-de-expressao

Por Paola Prestes

Colaboradora periódica, Paola Prestes faz a seguir o que ela mesma chama de “comparação à primeira vista talvez improvável” entre dois personagens, Joyce McKinney, de Tabloide,  documentário dirigido por Errol Morris, e Jafar Panahi, de Isto não é um filme. [EE]

Werner Herzog já comeu um sapato por Errol Morris. No final da década de setenta, desafiou o então jovem e esmorecido Morris a fazer seu primeiro documentário de longa-metragem, Gates of Heaven. Quando o filme foi concluído, Herzog cumpriu sua palavra: temperou seus sapatos com alho, cebola e alecrim, e os cozinhou emfogo brando por cinco horas. Porém, só degustou um pé, com estoicismo bávaro, vinho tinto e muita publicidade. A refeição pode ser vista no documentário de Les Blank, Werner Herzog eats his shoe (1980). [Veja  fotos reproduzidas de frames do filme à esquerda e abaixo]

Gates of Heaven mostra dois cemitérios de animais de estimação na Califórnia e as pessoas que gravitam em torno deles. É o retrato de uma sociedade em pleno exercício e fruição da fartura capitalista norte-americana, por um recorte insólito: a relação ser humano-animal, isto bem antes do Brasil passar de devedor a credor do FMI e, consequentemente, bicho de estimação virar pet nos living rooms da classe média brasileira. Assim como a escassez, o excesso provoca desvios psicológicos e deformações morais que Morris procura explorar em seu filme.

Começar a carreira com uma fada madrinha de botinas de camurça comestíveis e sotaque alemão não é pouca coisa quando essa fada atende pelo nome de Werner Herzog. Nos anos seguintes, Morris procurou fazer jus à graça recebida realizando A tênue linha da morte(1988), Rápido, barato e fora de controle (1997), Sr. Morte: Ascensão e queda de Fred A. Leuchter Jr. (1999) e Sob a névoa da guerra (2003). Se neste último filme trabalha com um personagem histórico, o ex-Secretário de Defesa norte-americano Robert McNamara, nos demais seus personagens estão na chave em que se ele especializou: a pessoa comum incomum.

Apesar disso, Morris pelo jeito nunca cantarolou o verso “De perto ninguém é normal” no chuveiro e se tornou uma vaca muito mais sagrada do que profana no cinema documentário americano. Se, pelo princípio ético que pauta todo documentarista que se preza, Morris sabe que é feio fazer planos fechados em lágrimas furtivas, não economiza zoom no momento de registrar o que há de menos belo e louvável por trás do globo ocular: obcecado por obsessões, enfoca tudo aquilo que claudica na mente humana. O que me faz pensar que uma lágrima é bem pouca coisa quando comparada ao oceano de neuroses, obsessões e idiossincrasias que seus personagens têm a oportunidade de exibir publicamente. Pois não se pode desprezar o fato que a câmera de Morris – não raro em sintonia com as câmeras de programas de televisão frouxamente vinculados a noções de realidade – atiça e exacerba a faceta exibicionista dos personagens por meio do que eles têm de mais absurdo ou chocante. Ou acreditam que irá chocar. [Na foto acima, Errol Morris e Werner Herzog no Festival de Nova Iorque de 2010].

O post Tabloide – doença mental na América de Eduardo Escorel, publicado no final de outubro, comenta o último filme de Morris e seu personagem principal: a ex-Miss Wyoming e aliciadora de mórmons, Joyce McKinney. Pelo trailer do documentário (disponível na internet), dá para ver que Morris não perdeu a mão. Como diria minha filha, ainda sabe causar. O uso de efeitos gráficos e a edição que revela intimidade com o mundo da publicidade (Morris dirigiu dúzias de comerciais para Toyota, Nike, Exxon, Quaker, Citibank, Nasdaq, Bestbuy, etc.) faz Michael Moore parecer um documentarista do Leste europeu. No post, há um vídeo de Ms. McKinney na estreia do filme em Nova York, exercendo o que parece ser sua principal atividade atualmente: falar de si mesma.

A loira senhora exibe um tipo de comportamento maluquinho que a produção audiovisual americana vem disseminando pelo mundo ocidental como sendo o modelo da verdadeira humanidade. Ela é muito gente, boa, sexy a despeito dela mesma, tem direito de expressão garantido pela Constituição e história de vida interessantíssima. É também incompreendida, injustiçada, temente a Deus e, claro, bem intencionada. Se pessoas assim não deveriam causar mais reação do que moscas em hipopótamos sonolentos, a facilidade midiática que elas têm hoje de se expressar, mesmo quando não queremos ouví-las ou vê-las, merece toda nossa irritação. [Na foto ao lado, Errol Morris]

Entre as recentes estreias cinematográficas, há uma comparação, à primeira vista talvez improvável, mas eloquente, entre Joyce McKinney e Jafar Panahi, personagem de seu próprio filme, Isto não é um filme (2010), realizado com a colaboração de Mojtaba Mirtahmasb [ exibido na 35ª Mostra Internacional de Cinema de 2011, o filme estreou em São Paulo em dezembro e estaria para ser lançado no Rio]. A tóxica enxurrada de problemas da carochinha de pessoas como McKinney que congestiona a produção de documentários e programas de televisão, retarda por alguns minutos a compreensão que, no caso de Panahi, estamos diante de um problema palpável e com implicações sérias: seis anos de prisão, proibição de viajar para fora do Irã, proibição de falar com a imprensa e proibição de trabalhar por vinte anos: ou seja, uma violação de direitos civis gravíssima. Quando fez o filme, Panahi ainda aguardava o parecer final da Justiça iraniana a respeito de sua condenação. Em dezembro de 2011, a sentença foi confirmada.

No filme, Panahi abre várias vezes a janela do apartamento onde cumpre prisão domiciliar. A sala é então tomada por sons fortes como o estalar de fogos de final de ano, sirenes e trânsito. A gigantesca grua de um prédio vizinho em construção gira sobre si mesma, ameaçadora, como se procurasse um alvo a ser destruído. Parece querer invadir o pequeno terraço onde Panahi rega suas plantas. Essa imagem insólita e os sons provenientes do mundo do qual Panahi foi banido dão a impressão que, talvez, o único refúgio de sanidade naquela cidade seja o apartamento do cineasta. A verdadeira prisão está do lado de fora, numa sociedade onde não há liberdade.

É extraordinária a sequência final. Depois de se debater como um leão para conseguir fazer o que lhe foi proibido, Panahi vence o desafio que se impôs e rasga a camisa de força da intolerância. Encontra um personagem e conta sua história, tudo isso filmado de uma perspectiva original, o interior do elevador do prédio em que mora. Panahi segue seu personagem quando este sai do elevador, mas é obrigado a parar na porta do prédio. A câmera observa, por trás da barreira invisível de uma ordem judicial: lá fora, ardem fogueiras de fim de ano que mais parecem autos-de-fé a tomar conta da cidade. O que diferencia Isto não é um filme de Tabloide é o fato do filme de Panahi não ser fruto de uma obsessão ciclópica. É a vigorosa afirmação do direito à liberdade de expressão de um homem.

A liberdade de expressão que falta a Panahi [foto ao lado] sobra no caso de Joyce McKinney. Pena ela não ter nada a dizer, fora contar suas gastas estripulias sexuais. Pena Errol Morris acreditar que personagens freaks sejam mais interessantes que pessoas sinceramente comuns. Morris que me perdoe, mas acredito que o cinema documentário tem de ser melhor do que isso. Não pode, depois de tanta resistência, tanta guerrilha e poesia ser reduzido a contribuir para um sistema de produção audiovisual que se alimenta da desgraça, do horror e do que há de mais estúpido na intimidade alheia.

Ao final de Werner Herzog eats his shoe, Herzog diz que vai guardar o segundo pé de sapato para comê-lo quando uma das majors distribuir o filme de Morris. Isso não foi necessário. Assim como aconteceu com a Cinderela, com um pé de sapatinho apenas Morris foi distribuído, ganhou o Oscar (em 2003, por Sob a névoa da guerra) e visibilidade eterna no Olimpo dos produtores de cinema e televisão americanos. Deduzo, portanto, que Werner Herzog ainda tem um sapato cozido guardado na sua despensa. Neste caso, acho que chegou a hora de Herzog comer esse segundo sapato. Desta vez, não por um jovem cineasta cansado antes mesmo da batalha começar, mas por um cineasta que luta para que não lhe destruam a carreira já feita – e a vida –, num país onde fazer cinema representa a genuína loucura transgressora: Herr Herzog, é hora de comer seu sapato por Jafar Panahi. [Paola Prestes]

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