segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Contraindústria e os novos paradigmas

Publicado originalmente por Makely Ka (Belo Horizonte, MG) no Overmundo e retirado em 17/01/2011 do endereço:

http://www.overmundo.com.br/overblog/contraindustria-e-os-novos-paradigmas

Vânia Toledo

Itamar Assumpção ajudou a dar dimensão nacional à Vanguarda Paulista

Até meados de 1877, ano da invenção do fonógrafo pelo norte-americano Thomas Edison, a única forma de armazenamento de música era a memória. E foi assim nos últimos 50 mil anos pelo menos, quando se tem notícia das primeiras tentativas do homem de organizar os sons e os silêncios no tempo, imitando o que ouvia na natureza. Quando esses sons começaram a ser registrados nos discos de cera, podemos dizer que foi o prenúncio de uma mudança radical na nossa forma de armazenar – e ouvir – música. De lá para cá, a coisa andou muito rápido e em menos de 50 anos estava consolidado o que conhecemos hoje como indústria fonográfica. Essa grande indústria, que surgiu e se firmou no rastro do capitalismo galopante do século 20, incorporou como poucas alguns preceitos básicos da Revolução Industrial, como a utilização de tecnologia de ponta e a reprodução em série.

Consta que Cornélio Pires foi um dos primeiros artistas a gravar de forma autônoma no país, já que teve de bancar, ele próprio, a sua famosa série de discos, a partir de 1929, registrando as duplas caipiras no interior de São Paulo. Antes dele, porém, houve a fantástica iniciativa de Chiquinha Gonzaga e seu marido, que entre 1920 e 1922 mantiveram uma gravadora autônoma. Já na década de 1970, houve iniciativas como a do compositor Antônio Adolfo e seu emblemático Feito em casa. Mas se foram todas essas iniciativas louváveis, pelo pioneirismo e pelo teor contestatório que traziam, foram também isoladas e amadoras, a ponto de não conseguirem se autossustentar como alternativa viável às grandes corporações.

O exemplo mais bem-sucedido de uma iniciativa semelhante talvez seja o do grupo conhecido em meados dos anos 90 como Vanguarda Paulista. Esse grupo, que reunia bandas e artistas como Rumo, Premeditando o Breque, Língua de Trapo, Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé, concentrou suas apresentações no Teatro Lira Paulistana, criou um selo e uma distribuidora. Foi uma espécie de laboratório do que viria na década seguinte, gerando muitos desdobramentos visíveis até hoje e incentivando o início de várias carreiras que se inspiraram naquele movimento heroico. Muitos deles, inclusive, continuam na ativa, vivendo dignamente do seu trabalho como compositores e intérpretes.

Foi nos anos 90 que, efetivamente, passou a ser possível gerir uma carreira de forma autônoma, viver de um trabalho autoral sem estar vinculado a uma grande estrutura corporativa por trás. Pela primeira vez na história da indústria os meios de produção começaram a se tornar acessíveis a uma parcela considerável da população, não somente aos donos do capital. Não a todos, é verdade, mas àqueles que dispunham de um computador e uma conexão com a internet. Por mais excludente que ainda fosse, tínhamos dado um salto: não era mais necessário um parque industrial para produzir um disco, um livro ou mesmo um filme com qualidade compatível com produtos da grande indústria.

Há, de fato, um elemento artesanal na forma de trabalho atual, apesar de toda a tecnologia. A grande mudança de paradigma diz respeito, portanto, à mudança de procedimento num dos pilares que pautaram o desenvolvimento econômico do capital desde a Revolução Industrial: a especialização. A compartimentalização dos saberes e a ultraespecialização das atividades tornou-se a tônica da grande indústria, levada às últimas consequências com o fordismo e replicada nos mais diversos ramos do conhecimento, inclusive nas academias. Com a indústria da música não foi diferente. A esquizofrenia se instaurou no seio das grandes corporações, onde o departamento de criação não dizia respeito ao departamento de vendas, que não se comunicava com o departamento de comunicação e assim sucessivamente. A grande indústria foi à bancarrota.

O filósofo inglês Thomas Kuhn, em seu livro Estrutura das revoluções científicas, afirmava que nos momentos de crise há uma proliferação de novos paradigmas que competem entre si, tratando de impor-se como o enfoque mais adequado. É quando se produz uma revolução e um dos novos paradigmas substitui o paradigma tradicional. A cada revolução, o ciclo se inicia de novo e o paradigma que foi instaurado dá origem a um novo processo de ciência normal. Nesses momentos é fundamental uma nova terminologia, para dar conta dos conceitos que surgem. Com alguns ajustes, podemos adaptar o mesmo esquema para pensarmos a revolução ora em curso no interior da indústria cultural.

Nesse contexto surge o autoprodutor, o não especialista por definição. Ele compõe, produz, divulga, distribui e consome, não necessariamente nessa ordem. A necessidade premente em desatar tantos nós quanto possível da cadeia produtiva fez dele um profissional genérico que levou às últimas consequências a máxima anarquista “faça você mesmo!”. Esse autoprodutor é o operário da contraindústria. A negatividade implícita no termo significa menos a transformação vertiginosa dos aspectos técnico-formais do que a recusa do modelo consolidado de divisão do trabalho e atribuição de tarefas no sistema de produção em escala industrial. Essa é a principal mudança paradigmática, que traz, a reboque, todas as outras. A contraindústria se impõe, portanto, como um novo modelo de divisão de trabalho sem, no entanto, abrir mão dos avanços tecnológicos e das conquistas e soluções encontradas pela própria indústria. Essa nova divisão do trabalho se estrutura em redes colaborativas, nas quais a gestão das atividades é individual, orgânica e, ao mesmo tempo, coletiva. Contraindústria é, no plano sintático, um oxímoro (figura que reúne palavras contraditórias), mas a contradição dos termos é apenas aparente e perdura até o momento em que se percebe que ela se constitui na verdade como uma síntese dialética da revolução industrial. A ideia de redes e de rizoma (que não tem ponto de origem ou de princípio primordial comandando o pensamento) torna-se fundamental para compreender a forma como se dá o processo de produção contraindustrial.

Direito de cidadania

Indústria cultural, expressão sexagenária criada por Adorno no livro Dialética do esclarecimento, escrito a quatro mãos com Horkheimer e publicado em 1947, adquire assim um novo significado dentro de uma perspectiva dialética da história da produção e do consumo de arte. Aquele foi o momento de identificação do surgimento de um fenômeno em escala mundial que se consolidaria nos anos 60 e 70, atingiria o ápice nos anos 80 e entraria em franco declínio a partir de meados da década de 90 do século passado.

Por outro lado, o acesso à cultura é um direito garantido a todo cidadão brasileiro pela Constituição Federal de 1988. O problema é que estamos tão acostumados ao modo de produção privado nesse setor que muitos têm a impressão de que não é correto usar dinheiro público para produzir um espetáculo, editar um livro ou realizar um filme com a contrapartida de viabilizar à população a fruição desses bens culturais. Essa é uma visão conservadora que sustenta a ideia equivocada de que o artista pertence a uma elite intelectual na qual seria vergonhoso investir dinheiro público. Poucos defensores dessa ideia, entretanto, seriam contra a construção de hospitais e postos de saúde para o atendimento da população, ou ainda ao investimento em segurança, com a compra de equipamentos e treinamento da força policial. É que estamos acostumados a pensar que o acesso à cultura é um privilégio – e, muitas vezes, efetivamente é –, mas não deveria ser. Há, sem dúvida, um conflito entre os interesses privados e as obrigações de um Estado democrático. Conflito esse que se torna ainda mais explícito diante das distorções provocadas pela adoção do incentivo fiscal, transformado em principal mecanismo de política pública nas esferas governamentais.

Nesse recorte é interessante analisar o fenômeno das feiras de música e a força com que estão se impondo como um novo modelo de negócio contraindustrial. Sem dúvida, essa prática comercial, que remete à Antiguidade, diz muito sobre a nova configuração de um espaço que parecia saturado há alguns anos. A feira é um ambiente privilegiado para trocas, um espaço de relacionamento humano intenso, de intercâmbio entre culturas, saberes e modos de produção. Na feira, os negócios ocorrem no varejo, olho no olho. Mais um indício do caráter artesanal da nova ordem, como que freando o ímpeto consumista e estabelecendo outros parâmetros, mais humanos, às relações comerciais.

Impossível falar de cultura hoje sem pensar em sustentabilidade, em economia criativa, em redes solidárias e comércio justo. Um conceito alimenta o outro, dando forma a uma nova sensibilidade que desponta na superfície árida de crises financeiras e altos índices de desemprego. A cultura, um recurso que não se esgota, pelo contrário, se multiplica, pode ser uma resposta para esses momentos de incerteza. Mas, para qualquer ação concreta, contudo, é preciso dimensionar o tamanho da movimentação cultural no país.

O primeiro grande desafio a ser enfrentado é o levantamento de dados, o número de profissionais envolvidos, casas de espetáculo, eventos, produtos lançados e outros indicadores que possibilitem um diagnóstico mais preciso sobre as atividades culturais. Certeza que são milhões de pessoas envolvidas, mas sabemos também que a maioria delas atua na informalidade, invisíveis aos critérios utilizados para aferição.

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