sábado, 15 de janeiro de 2011

o discurso das águas

Enviado por João Evangelista Rodrigues – Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil – 14 de janeiro de 2011

o discurso das águas

o mundo todo quer entender o discurso das águas

o curso de seu vocabulário rio

estreito dicionário

em sua fúria de destrutivos pronunciamentos

os hermeneutas procuram o sentido oculto na lama

nas dores de Jó

nas ruínas do jardim do Édem

os semióticos analisam vestígios

o que do litígio urbano sobreviveu

os arqueólogos dialogam

com os bombeiros em tristes escavacações

de sentidos e sentimentos

os políticos proclamam

prometem

se acusam

denunciam falhas do sistema

falsas interpretações

eternos dilemas

adiam verbas

conjugam verbos de intransitivo amor

de pretéritas emergências e decisões

os comunicadores usam e abusam

da sede de verdade

dos homens incrédulos

os marqueteiros de plantão

faturam com a audiência

e novas campanhas pluviométricas

os homens de negócio negociam novas situações

calculam os pontos e as vírgulas

lêem como sabem e querem as ondulações das letras

nas vertentes devastadas

assassinam novos contratos e convênios

de conveniência mútua

os homens públicos ficam mais públicos

choram lágrimas de crocodilo

em nome do bem comum

os místicos fazem mágicas

acendem velas

queimam incenso para os deuses atléticos

inacessíveis e seguros

em seus reinos míticos

guarnecidos por anjos

por tropas de elite

as companhias de seguro

ficam de olho no futuro ameaçado

enquanto isso as águas caem do céu

dos infernos das nuvens

dos telhados

assustam homens e bichos

aves e pedras

plantas e animais domésticos

arrebentam muros

furam paredes

derrubam casas

invadem igrejas

granjas

fábricas de brinquedos

templos e estádios

a temporada de chuvas continua

profetiza a moça do tempo

o serviço de meteorologia

no seu afã de dizer

as águas engolem escolas e bibliotecas

out-doors e placas luminosas

comem estradas e sinais de transito

espalham o vento do medo

sua lição de humildade

o livro da natureza ao se deixa ler

pela razão humana

que a si mesma se arrasa

o discurso das águas se reproduz

em filetes e simulacros

em risos e tempestades de sentidos

saltam das páginas infinitas do universo

rugem rangem rasgam vomitam água e fogo

a ira de Netuno que tudo ununda

rolam com os cadáveres dos homens e das coisas

pelas encostas

desfilam com os mortos pelos morros amassados

pela ruas e avenidas mascaradas

ruflam tambores

entoam marchas fúnebres

pelos becos e esgotos

pelos canais todos da convencional incomunicação

as bocas anônimas cantam hinos

solidários

juntas se iluminam

as águas e sua linguagem insípida

inodora encantadora polissemia de enigmas

com seu discurso indecifrável

tudo liquida

tudo esmaga com sua força natural

sem regime

sem lei

nada estanca o sofrimento

o silêncio do Planeta sonâmbulo

diante de tantas palavras e idiomas

o mundo todo quer entender

o grito solitário

o discurso das águas sem sono

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